"Noturnas do Itamaraty". O título pode parecer estranho, mas nada há neste texto que justifique a suspeição, como poderão ver em seguida ao recordarmos juntos aqueles dias de um remoto mês de julho, em 1972, quando a sequidão característica de Brasília já se insinuava em dias calorentos, embora as madrugadas se apresentassem agradáveis com amena brisa embalando o sono da gente. O que pesava mesmo era a sinistra atmosfera que se instalou com a ditadura militar, naquela etapa conduzida com especial rigidez por Garrastazu Médici, como parte do que se chamou depois de os anos de chumbo.
Logo terminava o expediente no Palácio Itamaraty e encerrado o acesso do público para ver a exposição intitulada O Espírito Criador do Povo Brasileiro, nós entrávamos com nossa pequena equipe e a parafernália de filmagem para realizarmos o documentário que dirigi e que levou o mesmo nome da mostra. Eu e Fernando Duarte, o fotógrafo, havíamos arregimentado os alunos do curso de cinema da Universidade de Brasília para a tarefa que também tinha fins didáticos como parte das matérias que lecionávamos.
Como era impossível realizarmos o trabalho durante dia, porque o espaço era destinado ao público da mostra, nossa jornada de filmagens noturnas se estendia madrugada adentro em fremente agitação que só diminuía o seu ritmo quando já faltava pouco para o dia raiar.
Solidários
Lembro-me, a propósito, que recebíamos a visita sempre bem-vinda de amigos que vinham ver as filmagens, um acontecimento que era ainda raro por aqui. Muitos deles entravam no clima e terminavam nos ajudando. Foi o caso de Isabel Patriota, de loura beleza e uma flor de pessoa, simples e solidária, que aparecia para matar a curiosidade pelo cinema, mas de repente entrou na dança, ajudando a empurrar douradas madona e piedosos São Franciscos, nos animando com sua espontânea atitude. Não por acaso, pertencia ao clã dos Patriotas, família tradicional de diplomatas, irmã que é de Antônio Patriota, que terminaria ministro das Relações Exteriores, como sabemos. Sua presença vinha, portanto, a calhar.
Para realizarmos esse registro único da importante exposição, a maior que mereceu o acervo então pertencente ao saudoso especialista pernambucano Abelardo Rodrigues, apelei para o meu amigo Augusto Rodrigues, o pintor e educador, criador da Escolinha de Arte do Brasil, irmão de Abelardo; e ele nos apoiou e fez gestões junto aos setores do ministério de forma a facilitar a realização do documentário. De uma só tacada passamos a contar com a atenção e ajuda de Rubens Ricupero, de Romeu Zero, de Chico Alvim e até de Celso Amorim, que tinha sido assistente de Cacá Diegues e sabia das agruras do cinema. E também de Arnaldo Carrilho, nosso conhecido, que, mesmo servindo no exterior, mexeu de lá os seus pauzinhos para nos abrir as portas. Quase todos em início de carreira, mas ligados às boas causas. E para fazer justiça, não podemos esquecer as bênçãos de Wladimir Murtinho, imortalmente ligado às iniciativas da casa de Rio Branco.
Assim a tarefa transcorreu em ritmo acelerado, mas divertido, e não sentíamos o tempo passar, às voltas com os guardados de Rodrigues distribuídos em apaixonantes itens da arte indígena, da chamada arte popular ; incluindo-se aí relíquias do velho Vitalino, um gênio da raça - de esculturas, desenhos e gravuras, não só de talhe primitivo, mas modernistas como o das obras dos mestres Goeldi, Samico, Hansen Bahia e de outros do mesmo naipe, compondo então uma confluência e um transe mágicos em que se tocavam e se confundiam no mesmo espaço o popular e o erudito, base de toda cultura. Tudo isso abrigado naquela que é tida e havida como a mais bela obra de Oscar Niemeyer, com seu soberbo desenho, seus espaços generosos e seus arcos de corte único entre o clássico e o contemporâneo, numa festa para os olhos. Saíamos dali estonteados de tanta beleza para um rápido café da manhã e indo direto para a sala de aula a fim de cumprir a obrigação, estremunhados e bocejantes.
Astúcia
Durante os dois meses em que esteve exposta, a coleção de Abelardo Rodrigues foi alvo de alvoroçadas especulações e, ao que consta houve de fato cogitações de setores do governo para que a preciosidade não mais deixasse Brasília, aqui permanecendo definitivamente. O argumento principal era de que a nova capital não dispunha de um museu de arte à altura de seu status e simbolismo, ainda mais porque aquele numeroso e representativo conjunto de peças poderia funcionar como uma espécie de célula mater que ensejaria o início do tão sonhado museu da civilização brasileira, feliz ideia do grande Mário Pedrosa, que nunca saiu do papel.
Nesse clima, entrou em cena a Caixa Econômica Federal com uma proposta que visava, de fato, fixar aqui a coleção, com vistas a um seu pretendido museu, o que não se consumou. A coisa ferveu nos bastidores com foros de uma conspiração com lances rocambolescos que já vão sendo esquecidos: manobrando à sombra e invocando seus orixás, Antônio Carlos Magalhães, então governador da Bahia, num gesto sorrateiro, procurou a viúva de Abelardo, dona Irene Rodrigues, e no ato adquiriu para o seu estado toda a exposição.
Houve um entrevero entre ele e o governador de Pernambuco, Eraldo Gueiros, que defendia a volta do acervo ao seu berço natural, mas que jamais antes se manifestara no sentido de reter o patrimônio em sua terra. Magalhães, que pouco frequentava as reuniões da Sudene, inesperadamente apareceu no Recife e, pouco depois de sua visita à família do colecionador, num lance sensacional com direito a manchetes dos jornais, Gueiros mandou a polícia cercar a casa e prender os funcionários da transportadora Fink, chamando a atenção da rua, juntando curiosos que assistiam o entra e sai dos oficiais de Justiça.
A queda de braço entre os dois terminou numa ação que correu nos tribunais e da qual ACM saiu vencedor, carregando para a Bahia a preciosa carga que só aumentou o já rico plantel cultural da boa terra. Perder mesmo, quem perdeu foi a nossa Brasília, que a tudo assistiu sem nada poder fazer, segundo alguns por mera timidez do ministro Mario Gibson Barboza, titular do MRE à época, ou talvez por ser pernambucano fez corpo mole numa adesão à posição de Eraldo Gueiros.
Essa breve memória nos ocorreu, não alinhada como aqui aparece, mas de forma fragmentária e emocional, na noite de terça-feira da semana passada, durante a solenidade que marcou o cinquentenário do Palácio Itamaraty, quando assistimos ao nosso filme da exposição aqui referida, com o seu colorido, que era tão vivo, já esmaecido pelo tempo, bater nas paredes de nobre e reluzente mármore.
Ao mesmo tempo em que era exibido em outro salão do Palácio o importante documentário de Fernando Duarte, Ponto de Encontro, enfocando a escultura interativa da inesquecível artista Mary Vieira e que foi realizado no mesmo período. Cabe agora ao MRE promover a competente pesquisa e busca em arquivos públicos e privados no sentido de reunir todo um acervo fílmico que é parte de sua história e que só virá a enriquecer o respeitável conjunto artístico em permanente exposição em suas dependências.
;Saímos do Palácio Itamaraty estonteados de tanta beleza para um rápido café da manhã, e indo direto para a sala de aula a fim de cumprir a obrigação;