Relacionamentos sempre foram a tônica das crônicas de Xico Sá. Até agora. Chega às prateleiras o livro A pátria em sandálias da humildade, o primeiro em que o escritor reúne duas paixões: futebol e romances fervorosos. Na publicação, há crônicas escritas entre 1995 e 2016. As primeiras remetem ao início da carreira do autor, ainda ;foca; (iniciante) no extinto Tabloide Esportivo, de Recife.
Como qualquer jornalista inexperiente, Xico Sá começou o ofício com análises técnicas e mais frias do futebol pernambucano. Cearense de Crato, sempre teve certo lirismo, divagava sobre toda sorte de assuntos relacionados aos gramados. ;Não me interessa a tática, a estratégia, e sim, entender o que ele (o futebol) representa na vida das pessoas;, resume. ;Quero falar do cara que vende a própria casa para ver o Corinthians ser campeão no Japão;, explica o cronista e comentarista de mesas-redondas.
No entanto, inconscientemente, foi relegando os escritos sobre o esporte ao segundo plano na trajetória literária, mesmo depois de retomar o trabalho no segmento com o programa Cartão Verde, na TV Cultura, quando se aproximou e virou amigo do craque Sócrates, um eterno mestre para o qual dedica um dos capítulos do livro.
Acertadas as contas com o passado, Xico pretende lançar outros projetos com a temática ; a mesma que fez de outros escritores brasileiros nomes internacionalmente reconhecidos. Vale lembrar, por exemplo, de Nelson Rodrigues e Sérgio Rodrigues (leia abaixo). ;Tenho planos literários para a Copa do Mundo de 2018. São ideias ainda confusas, mas que vieram para ficar;, assegura.
Assim como veio para ficar a esperança do brasileiro em levantar uma taça novamente, depois do vexatório 7 x 1 contra a Alemanha, na Copa do Mundo de 2014. Para o autor, com um bonito desempenho em campo, o complexo de vira-lata aos poucos dá lugar à confiança no time de Tite. O temor de que a Seleção canarinha não dispute os jogos se dissipou. ;Com o técnico Tite, ficou claro que era mais uma questão de arrumação do time do que dos jogadores. Voltamos à condição de favoritos;, acredita.
Há alguns meses, quando nasceu a primeira filha, Irene, o jornalista ; e também participante dos programas Redação SporTV, no SporTV, e Papo de Segunda, no GNT ; precisou rever tudo que considerava uma hierarquia na vida. Desmantelou todas elas, inebriado pela paternidade. Mudou o tom até mesmo nos embates políticos, suavizados pela calma de quem, depois de uma ;psicanálise; para fins de redes sociais, percebeu que o diálogo é sempre a melhor saída. Seja dentro dos gramados, seja na mesa de botequim. O lema, agora, é seguir sereno. Até o fim ; mesmo se a filhota decidir torcer para o Flamengo. ;Ela pode ser o que quiser, desde que seja rebelde;, brinca.
Cinco perguntas / Xico Sá
O futebol está intrínseco à cultura brasileira. Não te incomoda ver uma moçada torcendo para times de fora do país?
A preocupação agora não é perder torcedores para times internos. O perigo são as gerações não torcerem para os times daqui. Torcer para o Barcelona, o Real Madrid... É o grande fenômeno. Mas é impossível de deter. Eu vejo os jogos, mas não me pego nem um segundo torcendo por times de fora. Essa geração já nasceu com essa história, até porque, nos videogames, entram com esses times, em uma luta um pouco inglória. Não há mal nenhum.
O que acho chato é não torcer por ninguém daqui. O lugar onde mora, onde vive. Perde-se um pouco da gozação, da tiração de onda. Na segunda-feira, na escola, chegam comentando o campeonato inglês ou espanhol. Isso é uma questão que só podemos resolver com a melhora da qualidade do nosso futebol. Não adianta. Podemos ter mil teorias. Nada muda se não tivermos grandes times e um futebol competitivo. Com a cabeça globalizada, essa geração é livre para gostar de um filme ou de um livro de qualquer canto. É uma mente sem fronteira, nesse sentido. Vejo a molecada desacreditada depois do 7 x 1, mas um título na Rússia recuperaria isso.
De alguma maneira, a situação sociopolítica do Brasil afeta o esporte?
O futebol consegue, historicamente, ser pior do que o cenário político convencional. Não há eleições nas federações que mandam no setor. Tem coronéis que estão há 30 anos no comando. Marco Polo Del Nero, presidente da CBF, não pode cruzar a fronteira do Paraguai, com o risco de ser preso. Isso no futebol é bem possível, enquanto na política tem-se o mínimo de operações de investigação, mais o questionamento da sociedade. Nesse esporte, estamos no pré-cenário político que vivemos hoje. Isso que é o mais maluco. O Del Nero consegue ser pior do que o Michel Temer!
Isso também acontece na esfera do comportamento, mais machista do que a média da sociedade?
Sim, basta ver o que fazem com o futebol feminino. De vez em quando, há um surto, algum patrocinador bota uma grana, mas é completamente escanteado, relegado ao último plano. O pior é que qualquer opinião contrária a isso ainda é considerada um absurdo. Dizem que somos falaciosos, errados, politicamente corretos, que estamos acabando com a graça das coisas. A questão não é essa. A questão é o machismo miserável, sem fim. É um humor que não chamo nem de infantil, seria menosprezar a inteligência das crianças. Chamar o goleiro de ;bicha;, não fosse uma grande sacanagem, é, no mínimo, pobre. É o humor canalha do fim dos anos 1930 do século passado. E as próprias torcidas começam a achar que isso não diz nada. Temos uma presença maior de mulheres nos estádios, e isso acaba forçando, de alguma forma, a mudança. Continua o grito de ;gostosa;, claro, mas já é bem diferente de 20 anos atrás, quando uma mulher subia na arquibancada. Já houve uma mínima amaciada.
Recentemente, aconteceu a polêmica contratação do goleiro Bruno... (contratado pelo Boa Esporte, o jogador foi condenado por mandar matar Eliza Samudio).
O caso do goleiro Bruno mostra como o futebol se acha um meio fora do jogo social. Isso está errado. O futebol reflete a sociedade, e a sociedade reflete o futebol. Eles estão atrelados. E o futebol acha que é possível, contrariando todo o bom senso, contratar um cara que ordenou um crime daquela natureza contra uma mulher. Isso é sobre se achar em uma realidade paralela. Muita gente está lendo como uma questão de ressocialização, mas não é, porque não foi cumprida a pena, ele foi solto por conta de um recurso.
Após o período do impeachment, você passou a ter um tom menos combativo. Foi uma escolha?
Vinha de um embate bem pesado na eleição presidencial de 2014. Depois, nas minhas redes, defendia a clara noção do tamanho do golpe. Gosto de usar essa palavra porque o Romero Jucá me dá razão, sempre. Está tudo se revelando nos diálogos. É uma grande mutreta! Sigo com essa opinião muito firme. Tiro um pouco o pé da jogada, porque há momentos em que se entra em discussões que não vão levar a nada, com o risco de radicalizar e ficar como aquele cara fanático, por conta até do desgaste do período eleitoral. O embate foi pesado, desgastante. Tento ser mais inteligente na discussão. Nessa loucura, nessa briga sem fim, passei a questionar não o teor ideológico, mas a forma raivosa como eu me colocava. Rolou uma terapia e psicanálise para fins de rede social. Tendo agora equilíbrio. Muito.
A pátria em sandálias da humildade
De Xico Sá. Editora O Realejo. Número de páginas: 160. Preço: R$ 42.
Depoimento - Sérgio Rodrigues
;Estou muito curioso com o livro do Xico Sá. Podemos dizer que há certo preconceito com a ideia de fazer literatura que envolva futebol. Mas não o acho grande ou tão disseminado. Uma parte dos leitores mais ;intelectuais;, dos críticos acadêmicos, provavelmente torcem o nariz. Como torceriam para um romance que envolvesse o jogo do bicho, o carnaval, ou qualquer manifestação popular. Tem gente que separa os temas elevados e baixos. Um equívoco! Mas não tive dificuldades, por exemplo, de levar O drible à editora.
Existem lacunas que precisam ser preenchidas na área que correlaciona futebol e literatura. Isto cria dificuldades, porque não é um caminho totalmente delineado; e oportunidades, pois há buracos a serem preenchidos. Escrever sobre futebol envolve desafios, não tão maiores que escrever literariamente bem sobre qualquer coisa.
Na área da crônica futebolística, o Brasil é muito bem servido. Desde Mário Filho, na década de 1920, abriu-se esse caminho. O país tem gerações e gerações muito interessantes de cronistas esportivos, que escrevem com ambição. Nelson Rodrigues, certamente, é o maior de todos. No caso do cronista, isso cria uma expectativa muito elevada, porque se compete com gigantes. No aspecto da ficção ou do romance ; o que eu fiz com O drible ; é um pouco diferente porque temos menos tradição.;
Sérgio Rodrigues é escritor e autor do romance inspirado no universo futebolístico O drible (Companhia Das Letras, 2013), editado em português, espanhol, francês e dinamarquês
[SAIBAMAIS]