Carlos Althier de Souza Lemos Escoar, o Guinga, não persegue o sucesso, mas sempre conviveu com ele. Meio reservado e de palavras contadas, o compositor e violonista, nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, quer apenas mostrar o seu trabalho.
Há muito tempo sem chegar ao público com um álbum de músicas inéditas, ele está lançando Canção da impermanência, gravado na Alemanha pelo selo Acoustic Music Records. Das 13 faixas todas autorais ; 11 são temas instrumentais e em alguns usa vocalises e assobios. O resultado é a reconhecida sofisticação sonora, que costuma extrair das cordas do seu violão.
Aos 66 anos, esse carioca da gema, que não abre mão de caminhadas e de um bate-bola na orla de Ipanema, ultimamente tem investido no canto. Em duas das composições ; a que dá título ao CD e Lacrimare ; ele solta a voz, exibindo mais uma nuance do seu talento.
Embora fuja do rótulo de nostálgico, Guinga não esconde sua devoção por alguns mestres que já se foram, reverenciados em Trenzinho do Corcovado (clara referência a Trenzinho do Caipira, de Heitor Villa-Lobos), São Dorival, Domingo de Nazareth, Tom e Vinicius. Outro homenageado é o fabuloso Carlitos, que o inspirou em Chapliniana.
Sobram afagos também em Meu pai, que abre o repertório, e Dona Carmelita. Tenras recordações da mítica emissora que o tinha como ouvinte assíduo estão registradas em duas faixas intituladas Rádio Nacional. Já Doido de Deus, a única que ele não fez sozinho, tem como parceiro Thiago Amud, compositor da nova geração, a quem costuma elogiar sem parcimônia.
Entrevista / Guinga
O que levou um artista com presença permanente no patamar mais alto da música popular brasileira a escrever Canção da impermanência?
O medo da morte mesmo. É uma maneira de a gente continuar, tentar driblar um pouco a perspectiva da morte.
No seu entendimento, a composição que dá título a esse projeto permeia todo o álbum?
De uma certa forma, sim. Porque entre os homenageados acho que todos já não estão mais aqui.
Há quanto tempo você não fazia um disco com músicas totalmente autorais, inéditas e todas, praticamente, instrumentais?
Elas só são instrumentais neste contexto, porque a maioria está recebendo letras. Este é um disco de canções, na verdade, desde de Casa de Villa, mas não por falta de música, porque estou sempre compondo.
A faixa Doido de Deus é a única composta em parceria. O Thiago Amud é uma de suas apostas, entre os novos criadores da MPB?
O Thiago é uma realidade, é um grande artista que veio pra ficar.
O ofício de cantor o atrai?
Nunca me atraiu, tento cantar por duas razões: ninguém melhor do que eu sabe o que minha música está dizendo; e também porque os compositores intérpretes sempre foram mais valorizados no mercado. Não posso mentir.
Há alguns vocalizes no disco, além de citações diversas. São elementos que você gosta de utilizar?
Gosto muito. Tenho vários exemplos na música popular e erudita. Desde o Vocalise de Rachmaninoff à onomatopeia de Villa-Lobos ao Canto Gregoriano, passando pelas cantigas de ninar. O vocalise é também uma forma profunda de autocomunicação.
Além da homenagem a seu pai, há músicas dedicadas a Ernesto Nazareth, Heitor Villa-Lobos, Garoto, Dorival Caymmi, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. São mestres que o inspiram?
São todos meus pais.
Que lembranças guarda da mítica Rádio Nacional e do genial Carlitos?
Cresci ouvindo a Rádio Nacional e desde sempre acompanho Carlitos.
Há a possibilidade de as belas melodias criadas para o Canção da Impermanência acolherem versos?
A maioria já está recebendo.
Esse novo trabalho está sendo lançado pelo selo alemão Acoustic Musica Records. Como é sua relação com a s gravadoras brasileiras?
Sempre foi a melhor possível, nunca tive problema com nenhuma gravadora.
Como vê o tratamento dado à cultura pelos atuais mandatários do poder?
Eles se alimentam de outro tipo de coisa, se alimentam de ganância, insensibilidade e ignorância. Uma tríade poderosa.
Canção da impermanência
CD solo de Guinga. Lançamento do selo alemão Acoustic Music Records. Venda pelo www.acoustic-music.de/Guinga-Cancao-da-impermanencia/en
Crítica - Canção da impermanência (Guinga)
Paulo Pestana (Especial para o Correio)
Música é, essencialmente, um condutor de emoções. O desafio da música instrumental ; seja uma sinfonia ou um tema curto ;, é conduzir a intenção do compositor pelos canais sensoriais do ouvinte. Não se pode garantir que a emoção seja a mesma, mas a sensação é sempre coletiva.
Com 13 composições ; algumas da produção mais recente, outras bem mais antigas, recuperadas ; Guinga está lançando o disco Canção da impermanência.
É, obviamente e a partir do neologismo, uma celebração da vida, mas não como antítese da morte; ao contrário, é uma homenagem à permanência de personagens que já se foram e deixaram nele suas marcas. Contando apenas com o violão, o que, no caso de Guinga, é mais do que suficiente para traduzir sensações e emoções, ele passeia pelo tempo. Eventualmente usa a voz, quase sempre com onomatopeias, quase scats, e só mostra palavras na faixa que dá nome ao disco.
A viagem emocional começa com Meu Pai, construída a partir dos bordões do violão, mas que evolui por todo o desconcertante e inventivo repertório de criação do compositor, em uma estrutura de apenas 2min40. A partir daí, as homenagens alcançam Villa-Lobos (O trenzinho do Corcovado), Caymmi (São Dorival), Ernesto Nazareth (Domingo de Nazareth), Tom e Vinicius e Charles Chaplin (Chapliniana), entre as mais evidentes.
Como no disco anterior ; Roendopinho, de 2014 ; a engenharia de som registrou o violão de forma crua, com microfone aberto, o que ressalta tanto o som das cordas extraídas do bojo do instrumento, quando o tracejado obtido a partir da fricção dos dedos no braço do violão, o que poderia ser um incômodo cria quase um segundo instrumento, enriquece canções que estão sendo apresentadas da maneira que foram compostas.
É um disco para ser ouvido de olhos fechados; concentração total na música, nas intenções e no modo de interpretação. Guinga é um virtuoso do violão; apresenta acordes inusitados, extrai elementos que conduzem o ouvinte a um estado que só é possível alcançar com o idioma da música.
Há uma força inexplicável nas canções de Guinga, uma mistura de técnica cerebral e condução intuitiva e que pode ser analisada das duas formas ; a construção formal ou o sentido empírico. Mas é melhor se entregar ao prazer de estar junto a ele, na sala, ouvindo pequenas doses de beleza ; é esta a sensação que o disco entrega.
Guinga fecha o disco com Chapliniana, diálogo de sílabas aparentemente sem sentido, com uma melodia sentimental, que serve para traduzir o ofício desafiador. Entre malabarismos, estrepolias, choros e risos, a arte não precisa ser traduzida. Exatamente como Chaplin fazia em seus filmes sem palavras.