Diversão e Arte

Livro de ganhadora do Prêmio Nobel faz um manifesto contra a guerra

Em 'A guerra não tem rosto de mulher', a escritora bielo-russa Svetlana Aleksiévitch faz um libelo contra a boçalidade dos confrontos armados

Lourenço Cazarré - Especial para o Correio
postado em 08/04/2017 07:00
Em 'A guerra não tem rosto de mulher', a escritora bielo-russa Svetlana Aleksiévitch faz um libelo contra a boçalidade dos confrontos armados

A menina Svetlana Aleksiévitch, nascida em 1948 na Ucrânia, não gostava de ler livros de guerra, numerosos em sua casa, mas na escola ; na Bielo-Rússia, onde cresceu ; era obrigada a lê-los. ;Estivemos sempre a combater ou a preparar-nos para a guerra... Na escola, ensinavam-nos a amar a morte;. Ao seu redor, todos liam. Afinal, eles, soviéticos, haviam sido os vencedores do conflito recente contra os alemães.

;Depois da guerra, a aldeia da minha infância era feminina... Não me lembro de vozes masculinas;, escreve Svetlana na abertura de A guerra não tem rosto de mulher (Ed. Companhia das Letras). Os homens eram poucos porque milhões deles perderam a vida na Grande Guerra Patriótica (assim chamada pelos soviéticos). A Bielo-Rússia teve dizimado um terço de sua população. A Rússia perdeu cerca de 22 milhões de pessoas.

Svetlana formou-se em jornalismo em 1972. No final daquela década, resolveu escrever um livro não sobre a guerra, mas sobre os seres humanos na guerra. ;Não escrevo a história da guerra, mas a história dos sentimentos. Sou historiadora da alma;. Passou a colher depoimentos de mulheres que haviam atuado no Exército Vermelho. Surgiria então um estilo (literário, jornalístico?) que décadas depois seria consagrado com o Nobel de Literatura (2015).

O efetivo feminino das forças soviéticas chegou a 1 milhão. Svetlana parou de contar suas entrevistadas quando elas ultrapassaram 500. Gravou longas conversas com lavadeiras, cozinheiras e enfermeiras, mas também com franco-atiradoras, pilotos de aviões de caça e comandantes de artilharia. Entre elas encontrou ;narradoras espantosas;.

Das confissões dessas mulheres, Svetlana pinçou os trechos mais impactantes ou tocantes. Quase sempre devastadores. E com eles montou um livro-mosaico que foi recusado por muitas editoras antes de chegar ao prelo, em 1985, já nos estertores do comunismo. A obra vendeu 2 milhões de exemplares nos primeiros cinco anos.

Escritos polifônicos

Com a técnica de traçar vastos painéis a partir de incontáveis narrativas de pessoas comuns, Svetlana produziu outros escritos polifônicos sobre sofrimento e coragem. Entre seus livros publicados, destacam-se Rapazes de zinco (sobre os jovens russos que, sem saber o motivo, lutaram no Afeganistão); O fim do homem soviético (sobre a desilusão dos que cresceram durante os anos em que o comunismo garantia emprego a todos os que não abrissem o bico para criticar o regime); e Vozes de Tchernóbil (relatos dos que sobreviveram à grande catástrofe nuclear).

Diferentemente dos livros sobre a guerra escritos por (e para) homens, a obra de Svetlana não apresenta heróis nem proezas incríveis, não descreve batalhas nem gaba armamentos. Mostra apenas ;as pessoas ocupadas na sua atividade humana e simultaneamente desumana;. Dor, fome, frio, desespero, infestação por piolhos e mutilados, muitos mutilados, estão em cada uma das páginas.

Svetlana confessa que, com seu livro, pretende desmontar todas as mentiras tramadas em torno das guerras de modo que a palavra guerra passe a provocar náusea e que a simples ideia de que possa existir seja repugnante. Quer, enfim, que seu trabalho ;faça vomitar os próprios generais...;

A obra é dividida em 17 capítulos. Nos primeiros, vemos o entusiasmo das moças que faziam de tudo a fim de serem convocadas para enfrentar os nazistas, que haviam invadido a Rússia e logo chegaram à periferia de Moscou. Mas também fica clara a resistência dos chefes militares que não desejavam ter garotas na frente de combate.

A primeira versão de A guerra não tem rosto de mulher sofreu vários cortes impostos pelos censores. A versão mais recente traz alguns dos trechos eliminados. Num deles, num dos poucos depoimentos masculinos, um soldado fala sobre o avanço pela Alemanha derrotada no final de guerra: ;Somos jovens. Fortes. Há quatro anos sem mulher. Apanhávamos garotas alemãs e... Dez homens violavam uma. Apanhávamos meninas... Doze, treze anos...; É um livro escrito deliberadamente para sentir naúseas da guerra.

A guerra não tem rosto de mulher
De Svetlana
Aleksiévitch/
Ed. Cia das Letras. 392 páginas


Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação