;Foi, sem dúvida, o trabalho mais complexo e delicado de toda a minha carreira;, observa a atriz Carolina Ferraz, escolada por 27 anos de carreira, ao falar do personagem de A Glória e a Graça. Glória (Carolina), no filme de Flávio Ramos Tambellini, é uma travesti, na fita em consonância com temas da sexualidade. O preparo para a personagem que ampara a adoentada irmã Graça (Sandra Corveloni, em cena) veio, pelo que explica Ferraz de amplo laboratório. ;Colhi mais de 60 depoimentos, pude ouvir suas histórias de vida, de preconceito, seus sofrimentos e a luta para transformar a realidade à qual são comumente submetidas pela mídia e pela sociedade;, conta a atriz de 49 anos.
Na longa estrada de defesa da composição da personagem, ela explica que encarou o inesperado. ;Havia muito preconceito pelo fato de a minha personagem ser uma travesti. Cheguei a ouvir de executivos coisas do tipo: ;Você é linda, ótima atriz, tem credibilidade. Não vai queimar a tua carreira com esse trabalho;;, pontua. Para respaldar a íntegra caracterização de Glória, a atriz observa que fugiu do reforço de trejeitos. ;Evitei o olhar caricato da maioria, dos estereótipos e busquei fazer uma personagem que se sobressaísse por suas conquistas e colocasse as trans em um espaço diferente daquele em que normalmente são colocadas, à margem;, comenta.
Encarar polêmicas foi outro percurso acidentado, em defesa de A Glória e a Graça. Houve até quem se opusesse ao fato de uma atriz interpretar um papel que deveria manter a representatividade e ser representado por travesti. ;Acho que há uma luta legítima: elas merecem espaço, claro, em todos os segmentos profissionais, inclusive nas artes. Seria lindo uma trans representar a si, sua história, nada mais honesto, mas eu dei o melhor de mim e acredito que trouxemos avanço ao uma travesti por ser interpretada por uma mulher cis, uma vez que, geralmente, são interpretadas por homens, de forma caricata. Minha intenção, jamais, foi tirar o espaço de alguém, tanto que temos duas travestis no roteiro, mas, sim, dar visibilidade a este universo de uma forma carinhosa;, defende a intérprete de filmes como Alma corsária e Amores possíveis.
Com a voz naturalmente grave, ainda assim, teve uma preparação especial, com as cordas vocais trabalhadas por Christian Doouvort e Marina Medeiros. Num retrato sincero e com visível esforço da intérprete central, A Glória e a Graça, definitivamente, acusa um envolvimento extraordinário de Ferraz. Nunca abraçando rótulos e fórmulas prontas, ela conclui: ;Sinceramente, prefiro enxergar a Glória como uma mulher, que é como ela se considera, se enxerga e quer ser reconhecida. O preconceito vem pela desinformação, pelas brincadeiras de mau gosto, por questões menores, quando, na verdade, a pessoa deve ser reconhecida pelo que é realmente relevante, e acredito que isso esteja bem distante do gênero;.
Saiba mais
Cisgênero
Pessoa com identidade de gênero coincidente com o sexo biológico.
Transgênero
Pessoas que transitam entre os gêneros.
Três perguntas / Ernani Nunes, diretor de Gostosas, lindas e sexies
Com carreira de comerciais consolidada há 15 anos e sucessos na tevê como a série Adotada (MTV), além de atuação no teatro com mais de duas décadas, o diretor Ernani Nunes faz a estreia em cinema com filme antenado com dados contemporâneos: Gostosas, lindas e sexies. ;As personagens têm atributos de pegadoras. Elas podem, sim, fazer tudo o que um homem faz. Elas passam a fazer o que a sociedade restringiria, noutro período;, adianta.
Gostosas, lindas e sexies tem um título politicamente correto para a atualidade?
O filme é bem feminista. O título representa bem o filme. São quatro mulheres que escrevem em um blog e se conhecem estando acima do peso padrão. Elas se assumem, e não têm problemas com a imagem. São mulheres poderosas, determinadas e empoderadas. Estão de bem com a vida.
Qual o maior segredo de projetar a mulher brasileira, num contexto de comédia romântica, mais fluente no mercado norte-americano?
É uma comédia. Traz romance, drama e suspense, além de ação, mas é uma comédia. Mas, não colocaria o rótulo de comédia romântica; acho que é um filme que foge dos padrões. As quatro atrizes centrais, por exemplo, encabeçam o primeiro protagonismo das carreiras. Gordinhas, elas eram escaladas como a amigas da principal ou aquelas que sofriam bullying. Fugi do humor gratuito e caricato.
Seu filme chega a apostar em uma pitada de engajamento, em termos de empoderamento feminino?
O filme totalmente levanta bandeiras. São mulheres abertamente engajadas, participativas. O filme é bem feminista. Retratei a mulher bem atual. Apontamos conflitos e dilemas de qualquer uma. Beatriz (Carolinie Figueiredo) é a única que tem na consciência, num alter-ego, uma geladeira que serve como aqueles puxões de orelha que temos normalmente, em momentos da vida.