Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Artista plástico, Josafá Neves traz temas como racismo em exposição

Em cartaz na Caixa Cultural, Josafá Neves valoriza e recupera referências da cultura brasileira de matriz africana nos trabalhos que assina


Josafá Neves parte da própria experiência para falar de racismo. Nascido no Gama, há 45 anos, filho de uma costureira e um motorista, dois baianos que vieram ajudar a construir Brasília, o artista quase desistiu da pintura. Os obstáculos foram muitos. A pele negra e a postura autodidata barraram as oportunidades mas, ao mesmo tempo, fizeram da obra de Neves uma voz forte e contundente. Valorizar e recuperar referências da cultura brasileira de matriz africana se tornou um compromisso desenvolvido em pinturas, esculturas, gravuras e desenhos de séries como Africanidade, Negras raízes, gênero, raça e cor e Diáspora.
[SAIBAMAIS]
Em cartaz na Caixa Cultural, esta última resulta da pesquisa mais recente, realizada em parceria com Lêda Gonçalves. Para a série, o artista mergulhou na história de personalidades afrodescendentes cujos nomes acabaram relegados aos meios nos quais atuaram. ;Essa mostra é sobre o rico patrimônio cultural que veio e se perdeu no Brasil. Acho que a gente falar sobre isso é importante, porque a diáspora trata do resgate e da afirmação do negro. Faço retratos dos personagens da diáspora na cultura, nas artes, na música, na academia e na literatura;, explica.

Na Caixa, o artista mostra 30 obras que recuperam nomes como do advogado Luiz Gama e da antropóloga Lélia Gonzalez, menos conhecidos, e de personalidades mais familiares, como o ator Grande Otelo, o geógrafo Milton Santos e o compositor Pixinguinha. A pesquisa rendeu cerca de 60 nomes e foi guiada por reflexões do pesquisador e compositor Nei Lopes sobre a herança cultural deixada por descendentes de africanos. Parte dela foi exposta em 2016 e Neves pretende continuar o trabalho e aumentar a série. ;A gente tem um projeto, acho que vem aí uma próxima Diáspora, porque é muita gente;, avisa.

Neves não esconde o caráter didático de sua obra. A cada exposição, ele coloca em prática um enorme trabalho de arte-educação no qual incentiva as crianças a discutirem temas como racismo e heranças culturais.

30 - Número de obras na exposição

Entrevista / Josafá Neves

Por que é importante falar da herança africana nas artes?
Porque é preciso falar sobre essa questão, sobre o que aconteceu, o que a gente vive. Nossa base é a história, sem história não tem cultura. Falar sobre isso é importante, porque a diáspora trata do resgate, ela é o resgate e a afirmação do negro.

Acha que esses nomes que você escolheu para a série estão esquecidos, se perderam?
Não se perderam, mas é que tem algumas pessoas, como, por exemplo, o Grande Otelo, que era um ator negro, um dos primeiros que surgiram, ele não é tão falado. Ou o próprio Luiz Gama, um advogado que teve grande contribuição para a libertação de escravos, e vários outros personagens que cito nessa diáspora. A Lélia Gonzalez, por exemplo, uma negra que formou na academia, se tornou uma escritora conhecida entre os acadêmicos mas não começou com o movimento feminista no Brasil.

Por que não sabemos as histórias dessas pessoas hoje?
Somos mais de 200 milhões de brasileiros e o acesso a essas informações não é para todos. Nas oficinas, a gente trabalha com a lei 10.000/2000, que fala sobre o ensinamento da história afro-brasileira nas escolas. Se a gente for observar, existe a lei, mas ela não foi implantada, os professores não têm uma formação para lidar com esses temas do racismo, por exemplo. As últimas pesquisas dizem que 92% dos brasileiros nunca visitaram um museu, uma galeria de arte. A Diáspora trabalha isso. É da nossa cultura não conhecer muito a nossa história.

Você falou que é um artista engajado e que tem um compromisso. Qual é teu compromisso e como ser engajado na arte?
Meu compromisso está aí. Já fiz vários temas com relação à cultura afrobrasileira: Africanidade, Negras raízes, Gênero, raça e cor. Trabalho com esses temas há muito tempo. E na Diáspora, a gente faz um trabalho com as crianças. Faço a oficina com os alunos. E muitos falam que sofreram racismo. É muito bacana isso.

Então tem um cunho didático importante o teu trabalho?
Sim. Acho que precisa ter. Essa exposição foi para Cuba em 2015, para 12; Bienal de Havana. Lá tive essa sacação: eles têm muito acesso à cultura, não têm televisão. E, na Bienal, num domingo, todo mundo está na rua. Quando vi isso, pensei: ;Não quero meu trabalho só nas paredes de colecionador e com pessoas que têm acesso à arte;. Então, vim com essa ideia: cada aluno que participa do curso vai expor junto comigo. São mais de 70 alunos que já participaram, cada um pinta a matriz e, na exposição, montamos esse painel e passamos um vídeo para mostrar a oficina. Esse aluno que participa da exposição convida o pai, a mãe, o avô, e você trabalha essa questão de levar as pessoas para a galeria de arte e para os museus. Essa é a grande sacação. E a gente teve também um cuidado em colocar a questão de gênero, das mulheres negras.

Você nota o racismo nas artes visuais? E como você lida com isso?
O Brasil foi o último país a assinar o decreto, a lei contra a escravidão. A gente tem aí uma diferença de 400 anos. E o negro foi liberto sem indenização. Muita gente que estava ali, escravizado, pelo menos tinha um lugar para dormir, um teto para comer, mesmo sendo escravizado. De repente, você é liberto e não tem para onde ir com sua família e seus filhos. Então para onde foram? Para os morros, as favelas, caíram no álcool, na droga. Essas pessoas foram deixadas ao léu. E a gente tem aí uma história sobre essa questão. Você fica vulnerável. Só depois de 50 anos, você foi ter o direito de entrar na escola, porque você não tinha o direito. Quando você vê isso tudo, vê que o negro está inserido em poucas áreas, principalmente nas artes plásticas.

Arte é um meio muito elitista?
Elitista no sentido de formação, sim. Os artistas formados na França, em Harvard, isso conta para o currículo. Você já vai com um currículo desse, você tem um peso. E o artista autodidata não tem tanto peso assim. Você já forma uma elite com segregação desde as escolas, as escolas são segregadoras.

Diáspora
Visitação até 14 de maio, de terça-feira a domingo, das 9h às 21h, na Galeria Principal da CAIXA Cultural Brasília (SBS Quadra 4 Lotes 3/4).