Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Documentários expõem o assédio e a força da solidariedade entre mulheres

As duas obras mostram a repercussão dessa união nas redes sociais e fora delas

O uso de hashtags que agregam manifestações específicas em defesa dos direitos da mulher tem causado uma revolução feminista. Ela atinge, também, a esfera cultural. Um exemplo recente ocorreu no início do mês. O burburinho provocado pela campanha #MexeuComUmaMexeuComTodas fez com que o ator global José Mayer, acusado de assédio pela figurinista Susllem Tonani, fosse afastado de produções futuras da emissora por tempo indeterminado.

As hashtags (como #ChegadeFiuFiu, #MeuPrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e #DeixaElaemPaz) se transformaram em potentes megafones. Assim como páginas e grupos no Facebook, perfis no Instagram, blogs e uma dezena de sites, que fizeram da internet um dos mais relevantes campos de discussão do movimento, em diferentes graus. Essas ferramentas e esferas do ciberativismo são expostas pela ativista negra Ellen Paes e o cineasta Rafael Figueiredo no documentário #EuVocêTodasNós, disponível gratuitamente on-line no Futura Play.

;A internet foi criada para um fim e nós a subvertemos. O que foi criado para fins de controle, nós passamos a usar como meio para ativismo;, afirma a diretora. Para ela, já não é possível separar as ações reais (o chamado de feminismo de base, ligado inclusive à política) das ações virtuais. ;Precisamos saber que internet é mais do que rede social, é mais do que Facebook. É militância também;, completa. On ou off-line, convidadas como Lola Aronovich, autora do blog Escreva Lola escreva, e Jéssica Ipólito, do blog Gorda e Sapatão, batalham para democratizar essas demandas contemporâneas, durante muito tempo relegadas às discussões acadêmicas. Em suma, aproximam o feminismo da mulher real.

[SAIBAMAIS]



Contra a violência
Coincidentemente, o novo documentário de Sandra Werneck (de Cazuza: o tempo não para e Sonhos roubados) chama-se Mexeu com uma, mexeu com todas, nome da mesma campanha que pressionou um pedido público de desculpas de Zé Mayer. Com estreia em 5 de maio no canal Curta, o filme relata casos de violência contra a mulher conduzidos por quem vivenciou as situações.

Anônimas e famosas ; da modelo Luiza Brunet à escritora Clara Averbuck ; contam as impactantes memórias. Agredida verbal e fisicamente com chutes e socos pelo ex-marido, Lírio Parissotto, Luiza Brunet encontra-se, num dos momentos, com Maria da Penha (Lei n; 11.340/2006), farmacêutica que deu nome à lei que endureceu a punição a homens agressores, considerada um das melhores do mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Às imagens, misturam-se cenas de passeatas e manifestações que aconteceram no Brasil reivindicando maior proteção social ao sexo feminino. Tema mais que válido no país onde uma mulher é violentada a cada 11 minutos, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os dois DOCs reiteram, em uníssono: o feminismo é por e para mulheres ;mas a luta precisa ser de todos.



4,4 milhões
De mulheres foram agredidas no Brasil em 2016



Três perguntas / Ellen Paes

Na prática, a militância virtual tem sobressaído à de base? Elas rivalizam ou se complementam?
Elas se complementam. Não existe mais a vida real e virtual. Todo mundo está on-line inclusive quando não está. A militância de base tem se organizado também por meio da rede. É muito difícil você ver algum grupo que esteja se organizando 100% organicamente, se é que podemos usar essa palavra. Como a ativista Nathalia Grilo fala no filme: se ela, que faz militância de base na periferia, consegue ter contato com as companheiras lá da periferia de Natal, é porque a rede possibilita isso. A grande questão é não sair da rede. Porque para atingir a estrutura de fato, os discursos precisam se concretizar para além do espaço virtual. A função da rede é dissipar o discurso, ajudar a organizar, conscientizar, fomentar o debate. E esse debate deve ser levado à prática. Isso tem acontecido, sim.


A atriz Juliana Paes foi criticada por dizer-se contra algumas bandeiras e comportamentos associados ao movimento. Acredita que ainda há pessoas que não entenderam as premissas básicas do feminismo?
Os discursos não são perfeitos. De ninguém. Claro que no momento em que o feminismo ganha esse alcance e passa a ser capturado por parte da mídia, há uma tendência à superficialidade e esvaziamento das pautas. Mas eu vejo isso de forma positiva. É um sinal de que furamos a bolha e estamos chegando mais longe. Porém, não dá pra ser ingênua e é preciso estar sempre vigilante aos porquês. Por que estamos atraindo a mídia? Por que algumas pessoas vão continuar rejeitando o que falamos sem entender direito a nossa luta? Não basta ocupar estes espaços, temos que subvertê-los. Como Angela Davis diz, não basta que a gente ocupe espaços de poder, é preciso romper com a lógica deles. Não apenas se adaptar. Eu comemoro que Juliana Paes fale sobre feminismo e que isso possa atingir várias mulheres, porém, me entristeço quando o discurso dela, talvez ainda não amadurecido (não sei), possa contribuir para manter a lógica de oprimir outras mulheres que estão em situações e contextos diferentes.


No documentário, há o reconhecimento de que há diferentes formas de ser feminista ; a negra, a lésbica, a lésbica separatista, a gorda, a trans, etc. De que maneira usar essa interseccionalidade para fortalecer os movimentos, e não o contrário?
Se apenas um discurso prevalece significa que apenas um grupo está se sobressaindo. Isso não é democrático. E tende a privilegiar quem oprime. Claro que em certas situações é preciso que entoemos uma só voz pra nos fortalecermos. Como em casos em que vamos às ruas, que queremos chamar atenção para um caso, nos solidarizar em alguma questão que pode ocorrer a qualquer uma. Mas isso pode perfeitamente conviver com o respeito às nossas diferenças e especificidades. Audre Lorde diz que ;eu não serei livre enquanto houver mulheres que não são. Mesmo que suas algemas sejam diferentes das minhas;. É mais ou menos por aí.