Diversão e Arte

Belchior ocupou um espaço muito singular no rico panorama da música popular

Ele foi um dos integrantes da safra que surgiu e se firmou entre o fim dos anos 1960 e meados dos 1980.

Lourenço Cazarré - Especial para o Correio
postado em 06/05/2017 07:31

Belchior recusou o engajamento automático e deu caneladas no desbunde

Belchior foi o mais literário dos integrantes daquela que foi a melhor, mais numerosa e diversificada geração de grandes letristas brasileiros, a que surgiu e se firmou entre o fim dos anos 1960 e meados dos 1980.


Sempre me pareceu que ele era o que tinha mais e mais fundas leituras, detectáveis em muitas de suas composições. Apreciador de grandes poetas, estudou medicina e filosofia. Desta última provavelmente advém o seu gosto pela discussão aprofundada do que é essencial, daquilo que realmente interessa.

Quando falamos do período estamos abrangendo dezenas de exímios letristas desta nação muito musical e nada leitora. Que do Norte, de Belchior, ao Sul, de Kleiton e Kledir, foram todos morar em ;São Paulo violento; ou no ;Rio que me engana;.

Simplificando ao máximo, talvez se possa dizer que esses criadores ; cujas obras estão hoje incorporadas ao nosso riquíssimo acervo melódico ; abrigavam-se em dois grandes grupos, não declaradamente inimigos, mas que sempre que possível trocavam tiros. Especialmente quando se encontravam comodamente instalados, com um violão ao colo, em algum boteco, trincheira preferencial da época.

[SAIBAMAIS]


Coincidindo com os anos mais duros do regime militar, tínhamos uma agrupação que via na música popular uma barricada efetiva para enfrentar um sistema político violento e ilegítimo. Eram os autores de letras ;engajadas;, permanentemente aperreados pela paranoica censura oficial, que só raramente logravam burlar. Formavam o Esquadrão de la Revolución.

Havia outro grupamento, talvez mais numeroso, que igualmente combatia, mas em uma frente mais ampla e não menos brutal. Eram os que pretendiam, enfrentando a caretice da época, derrubar tabus relativos a sexo e drogas. Poderíamos considerá-los integrantes do Batalhão do Desbunde.



Divino maravilhoso
Entre essas duas revoltas correntes, navegava Belchior. Não há ; nem poderia haver ; uma só linha de discurso político nas letras de dimensões por vezes quilométricas de um poeta que escreveu o seguinte: ;Quem me deu a ideia/De uma nova consciência/E juventude/Tá em casa/Guardado por Deus/Contando o vil metal;.

Já no que se refere ao desbunde, o bardo cearense não se conteve e aplicou caneladas no líder do agremiação, ;Um antigo/compositor baiano;, que havia dito que ;Tudo é divino/Tudo é maravilhoso;.

Para marcar território, para dizer a que veio, Belchior afirma em ;Apenas um rapaz latino-americano;: ;Mas não se preocupe meu amigo/Com os horrores que eu lhe digo/Isso é somente uma canção/A vida realmente é diferente/Quer dizer/Ao vivo é muito pior;.

O vate do Sobral não tinha verdades para vender. Não estava interessado em teorias ou romances astrais. A sua alucinação era suportar o dia a dia. Solidário com os humilhados do parque, ele gostava até mesmo dos policiais (encarnação mais rasteira do governo cruel, segundo os engajados) que cumprem o duro dever de defender nossas vidas.

Um dia, há uns dez anos, coerente com o que escreveu em incontáveis versos desiludidos, o poeta, pintor e calígrafo cansou deste belo país tropical, abençoado por Deus, onde 50 mil morrem assassinados por ano e mais 50 mil atropelados nas estradas. O gentil e elegante rapaz latino-americano preferiu pegar a estrada e morrer sem dinheiro no bolso.

Lourenço Cazarré é jornalista e escritor

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