O acervo de Hilda Hilst é tão vasto que Daniel Fuentes, responsável por administrar o instituto que leva o nome da autora, acredita haver ali material para alguns livros inéditos. E eles virão. Um primeiro sinal está em Da poesia, que a Companhia das Letras publica agora, depois de adquirir os direitos de Hilst da Globo no ano passado. Da poesia é o primeiro título na nova casa. O livro reúne, em um único volume, os 25 títulos publicados pela autora entre 1950 e 1995.
Além de clássicos como Bufólicas (1992), Alcoólicas (1990) e Poemas malditos, gozosos e devotos (1984), o volume traz as primeiras publicções de Hilda, Presságio (1950), Balada de Alzira (1951) e Balada do festival (1955). São livros iniciáticos, nos quais a então jovem autora trata de experimentar diversas formas poéticas e se encontra na balada para falar de amizade, amor, morte e solidão.
A seleção foi feita em conjunto por uma pesquisadora contratada pela editora e por Fuentes. A intenção era realizar uma análise profunda do acervo para além do que já havia sido publicado. Ao final de Da poesia, a seção Poemas inéditos, versões e esparsos apresenta ao leitor o resultado pesquisa realizada em dois acervos. Antes de morrer, em 2004, Hilda vendeu parte de seus originais para a Unicamp, que hoje guarda o material ao lado do acervo de Monteiro Lobato. Outra parte é mantida no Instituto Hilda Hilst, na Casa do Sol, em Campinas, onde a escritora morava. ;O Instituto tem o acervo do mesmo tamanho da Unicamp e tem tanto essa produção final da vida dela quanto coisas que ela considerava mais próximas;, explica Daniel Fuentes. ;A gente tem cartas e a Unicamp tem cartas, mas as cartas da Unicamp são para críticos. Nós temos cartas mais pessoais.;
Completa o novo volume uma fortuna crítica com texto de Lygia Fagundes Telles, de quem Hilda era muito amiga, uma carta de Caio Fernando Abreu e uma entrevista publicada no Jornal do Brasil em 1989. No posfácio, o escritor e poeta Victor Heringer fala do descompasso entre ;ser vista e ser lida; que sempre rondou a vida da poeta. Muitas vezes identificada como indomável, obscena e louca, Hilda acabava vítima da própria imagem, embora, aponta Heringer, o rigor da obra estivesse muito além dos rótulos que atrapalharam o acesso aos escritos da paulista.
Mas Heringer lembra também que a quantidade crescente de trabalhos acadêmicos sobre Hilda e as novas edições são sinais do aumento do interesse pela produção intensa. Um interesse acompanhado de perto por Daniel Fuentes. ;Hilda sempre escreveu uma literatura de muita vanguarda, muito revolucionária, de desmonte de linguagem. E acho que toda vanguarda atinge seu público depois. Então acho que ela está atingindo o público dela agora. E ela está crescendo com públicos muito jovens;, garante Fuentes. O público jovem é um detalhe que o surpreende. A página do Instituto Hilda Hilst no Facebook conta com mais de 57 mil seguidores e o clube Obscena lucidez ; cuja assinatura permite receber, em casa, caixas com poemas, desenhos inéditos e outras reproduções de pérolas do acervo ;, já tem 130 membros. ;A ideia é tirar das gavetas coisas que não teriam normalmente muito espaço comercial;, avisa Fuentes. Ele acredita que essa seleção mensal pode ajudar a editar um livro de desenhos, poemas e textos inéditos. ;O clube é isso, a gente tenta aproximar esse público apaixonado pela Hilda, que só cresce, da preservação da Casa do Sol e do acervo. Isso amplia o acesso;, acredita.
Entre o material inédito contido em Da poesia, está um fac-símile de um poema escrito para Fuentes. Na lateral, desenhos de Hilda acompanham os versos, um hábito constante na produção da autora. Muitos de seus livros, especialmente os primeiros, foram ilustrados por nomes como Wesley Duke Lee, Clóvis Graciano e Kazuo Wakabayashi. A própria Hilda costumava desenhar muito e Fuentes especula que seria possível, inclusive, editar um livro apenas com desenhos da poeta. Alguns dos poemas inéditos estão datilografados ou escritos à mão. Uns poucos foram publicados em periódicos uma única vez e caíram no esquecimento. Outros são, na verdade, versões de poemas conhecidos e incluídos nos livros. Boa parte não tem data, embora três estejam datado de 1949, 1985 e 1989. A relevância em estudá-los, segundo Fuentes, está em se aprofundar no que seria o processo criativa da poeta. E para isso, ela deixou várias pistas. Além dos versos, há crônicas, cartas, diários, anotações, um material precioso para quem deseja entender melhor a obra de Hilda Hilst.
Da poesia
De Hilda Hilst. Companhia das Letras, 616 páginas. R$ 64,90
POEMA INÉDITO
No teu leito de lírios
Lambe-me o pelo
Agora reluzente
De remansos de zelo.
Devolve-me a cabeça
(Pois mula que sou
E deitada com o Pai
Isso talvez se faça ou aconteça)
Rodeia-a de rosas
Como os humanos fazem
À guisa de louros
Com os seus mais preclaros.
Barganha-me nas feiras
Em proveito Teu:
Mula que se fez musa
(Porque deitou com Deus)
Na grande noite escura
Do Teu riso.
Datilografados (com exceção da primeira versão da parte II, escrita à mão). Sem data. Acervo Unicamp
TRÊS PERGUNTAS PARA DANIEL FUENTES
Qual o interesse dos poemas inéditos?
Acho que o primeiro interesse é fazer circular de várias formas diferentes e essa é só uma delas. Hilda deixou muitas pistas do processo criativo, então tem a marginália dos livros, que é riquíssima, os desenhos, as agendas, os diários. Essa é a primeira coisa: queremos tirar das gavetas esse processo criativo e coisas que não teriam, normalmente, muito espaço comercial. No fim desse trabalho, teremos, pelo menos, um livro de inéditos.
Que volume de coisas inéditas você calcula que tenha? E os desenhos rendem um livro?
Sem dúvida, os desenhos rendem uma exposição grande. Precisam ser esquematizados, porque o que aconteceu até hoje? A gente sabe que eles existem e foram usados no design de alguns livros. Mas sabemos que Hilda tem uma produção tão grande em desenhos quanto a que tem em literatura. E os desenhos, ela fez ao longo da vida toda. Estamos em processo de compreensão e sistematização desse todo.
Você disse que a legião de fãs de Hilda Hilst cresce muito? O que há na obra dela de tão atrativo?
Acho que são dois movimentos esse crescimento de público. O primeiro tem um motivo mais técnico: ela sempre foi muito mal distribuída. Os livros ficavam, literalmente embaixo da cama do Massao (Ohno, editor). Com a Globo e agora muito mais com a Companhia, ela começou a ser muito distribuída e a merecer tiragens maiores. Pela primeira vez, ela está chegando para as pessoas lerem. Por isso tem esse mito de a Hilda ser difícil: porque era difícil chegar. E a Hilda sempre escreveu uma literatura de muita vanguarda, muito revolucionária, de desmonte de linguagem. O instituto tem uma vida nas redes sociais muito forte no Facebook, enfim. E a Hilda sempre trata das coisas essenciais, da morte, de deus, do corpo, que são os assuntos centrais da obra dela, assuntos de humanos. E agora ela está sendo muito bem traduzida - assinei com uma editora norueguesa, uma japonesa e uma agente que quer levar pra China. A obra já é gigante por si só. A questão é você fazer chegar.