Diversão e Arte

Festival Cena Contemporânea destaca inovações e experimentos das produções

A variedade de estéticas e trajetórias dos grupos locais mostra que a ideia é abrir cada vez mais as portas para a produção brasiliense

Isabella de Andrade - Especial para o Correio
postado em 20/05/2017 07:30

Gabriela Corrêa: busca de expansão do olhar sobre as coisas

Reconhecido em todo o país por levar diversidade e inovação aos palcos, o Cena Contemporânea dá destaque a novos e inventivos nomes da cena teatral brasiliense. Em sua seleção local de teatro para 2017, o festival contempla os espetáculos: A Moscou! Um palimpsesto, Duas gotas de lágrima num frasco de perfume, O inominável, Teto e paz, Tsunami, Poéticas urbanas, Velejando desertos remotos e Voa. Entre eles, nomes tradicionais da produção do Distrito Federal dividem o espaço com jovens elencos e artistas que experimentam pela primeira vez a experiência de participar do festival.

Diferentes gerações de atrizes ocupam o palco em Duas gotas, com direção de Sérgio Maggio. Gelly Saigg, Silvia Paes, Tainá Baldez e Gabriela Corrêa levaram aos palcos importantes memórias perdidas na época da ditadura militar brasileira. Estreante no Cena, Gabriela enfatiza que todo o elenco entrou de cabeça nas narrativas de jovens que permaneceram sem final. O trabalho com a escrita e as cartas foi outro ponto forte do processo criativo, para despertar sensibilidade e afeto na atmosfera do espetáculo. ;Tudo isso chega ao público de forma muito intensa porque tem muita identificação com os personagens e o período. Há uma inquietação porque a ditadura não é uma página virada; destaca a atriz.

A variedade de estéticas e trajetórias dos grupos locais mostra que a ideia é abrir cada vez mais as portas para a produção brasiliense. Atualmente, grande parte das boas salas de teatro do DF está fora do Plano Piloto, por motivos de interdição ou descaso público com os equipamentos culturais. Essa descentralização dos espaços físicos possibilita que novas plateias se formem e que a articulação entre diferentes grupos seja mais eficaz.

Lembrando a importância desse diálogo, Gabriela destaca que o Cena expande justamente esse diálogo, não só entre artistas, mas entre público, produtores e toda a cidade. ;Fazer parte disso é muito importante e significa contribuir na ocupação de espaços e na projeção do teatro brasiliense nessa arena, nesse redemoinho;.

Enquanto isso, Carlos Laredo leva ao festival a segunda parte de seu projeto que começou na peça Meninos da guerra. Ao lado de atores profissionais, jovens que viviam em situação de vulnerabilidade social mostram ao público as fortes histórias de Teto e paz. Para Laredo, esse trabalho tem forte importância teatral e sociológica, pois desvenda uma parte da sociedade que não costuma ser vista por outra parte da sociedade. ;Vivemos em uma sociedade que ninguém quer olhar, tocar, sentir ou ser confrontado por determinada camada social, que não quer perceber esse outro lado para não precisar agir. Quebrar esse muro invisível é de suma importância;, afirma o diretor e dramaturgo. O espetáculo promove um confronto entre a poesia dos palcos e a dureza da realidade das ruas. Para completar, o rapper Gog é autor da trilha sonora e também atua na peça.

Lareda destaca que não está trabalhando com atores ou não atores em sua criação, e sim com pessoas que conseguiram transferir um olhar heroico para uma vida trágica. ;Eu mesmo não daria conta do que aqueles meninos viveram, eles me amplificam os conceitos do que é possível;. Em Teto e paz, o teatro mostra sua capacidade de acolher diferentes públicos e camadas sociais, ampliando as possibilidades de reconhecimento e identificação com as histórias contadas no palco.



O diretor lembra que o jovem elenco nunca tinha ido ao teatro antes e, a partir de então, ele se tornou o veículo primordial para suas expressões pessoais, para que eles se representem, se reconheçam como cidadãos. ;Tudo isso acontece porque eles nos mostram que precisam do teatro como um veículo diferenciado para falar de dramas silenciados. É importante para a sociedade e para todos aqueles espectadores que tem milhares de histórias não contadas, não compartilhadas. O teatro é vital;.



A jovem atriz Jornada Mascarenhas, que divide com Similião Aurélio a direção de O inominável, comenta que o público atual espera ir de encontro a experiências e sensações transformadoras e únicas. O papel do artista seria promover esses momentos levando aos palcos assuntos que têm compromisso em informar e contribuir de maneira poética para uma sociedade mais justa e consciente, além de promover contatos mais afetivos e sensíveis entre as pessoas. ;Para mim, o afeto é político. A estrutura de apresentação da nossa peça, de um espectador para cada ator, desperta a curiosidade do público e depois essa relação se torna algo muito especial, porque o ator precisa dar conta de lidar, naquele momento, com o universo daquela pessoa;, afirma a diretora.

O elenco entra em cada cena com um espectador, que leva também suas próprias angústias e histórias. Assim, o público passa por um processo de deslocamento junto ao ator, saindo de seu espaço físico e cotidiano. As diferentes dramaturgias da peça são construídas a partir da relação com o público. ;O espectador também se vê em contato com um espaço diferente, o céu estrelado, a lua, um espaço onde a própria natureza proporciona o acesso aos mitos. O espectador se torna construtor de sentidos;, destaca Jordana.

Vale lembrar que, para o bom trabalho do ator, é imprescindível manter o fluxo de assistir a boas produções e apresentar suas criações. O Cena Contemporânea, além de movimentar com muito entusiasmo a cena cultural da cidade, é uma excelente oportunidade de intercâmbio entre artistas e espaço de novas ideias. O festival reúne um mosaico de espetáculos e grupos com diferentes conceitos e olhares sobre a atualidade, promovendo um amplo intercâmbio de ideias entre artistas e frequentadores.



Duas Perguntas /Carlos Laredo

Qual a diferença entre o processo criativo do atual Teto e paz em relação ao anterior, Meninos da guerra?
No processo criativo para Meninos da guerra enfrentamos circunstâncias muito diversas. As primeiras conversas foram em 2013; em 2014 começamos a contatar os meninos e estreamos em 2015. Durante cerca de três meses, o trabalho de criar confiança nos jovens para fazer teatro. Nós íamos aos abrigos conversar, explicar o projeto. Aqueles jovens estavam em uma situação de vulnerabilidade social, sem fazer nada, afastados da família por decisão judicial, desamparo familiar. O espetáculo foi muito difícil porque ficamos até o último dia criando vínculo e aqueles jovens nunca haviam subido ao palco, visto uma peça de teatro.

Os meninos que compõem o elenco mostram um crescimento no trabalho e processo de ator?
Acredito que o que define um ator é a capacidade para expressar o mundo dramático. O jovem que passou por uma vida tão difícil tem muito material dramático para oferecer, é um mundo dramático muito fértil, forte. Talvez eles, com 13 a 16 anos, tenham vivido muito mais situações dramáticas do que eu, que tenho 46 anos. Existem técnicas e ferramentas próprias do teatro, da interpretação, mas elas às vezes são substituídas por uma capacidade forte de estar no palco. A rua é um grande teatro, eles têm muita experiência de ver, observar, imitar, enxergar personagens diversificados que estão nas ruas. Eles estão com um trabalho de qualidade cada vez mais elevada.

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