Diversão e Arte

Michel Melamed relança 'Regurgitofagia', livro com reflexões políticas

A preocupação com o Brasil e, sobretudo, com o mundo contemporâneo, faz parte do texto de 'Regurgitofagia', baseado em peça exibida em 2004

Nahima Maciel
postado em 22/05/2017 06:01

Michel Melamed acredita que a questão principal para o país é a educação

Michel Melamed tem uma ambição que ele gosta de chamar de ;veleidade;. Essa presunção, ou vaidade, tem a ver com o Brasil. Quando atua em uma peça ou minissérie, quando monta um roteiro, escreve um texto ou apresenta um programa, ele tenta pensar, como ponto de partida, algo que tenha a ver com o país. ;É uma certa obsessão. De alguma maneira, o país é constante nos trabalhos e nenhum está circunscrito ao período histórico. Tristemente colocando, as questões brasileiras são reincidentes né?;, analisa o ator. Tão reincidentes que, quando olha para Regurgitofagia, livro sobre a peça encenada em 2004 e agora reeditado com alguns acréscimos, parece falar dos dias atuais.

[SAIBAMAIS]
A preocupação com o Brasil e, sobretudo, com o mundo contemporâneo, faz parte do texto de Regurgitofagia. São fragmentos de texto escritos por Melamed e levados ao palco em um espetáculo interativo e marcado pela combinação de diferentes linguagens. Nos textos, o autor mistura teatro, stand-up comedy, poesia e artes plásticas com a intenção de levar a plateia a refletir sobre política e sociedade.

Durante o espetáculo, as reações do público eram transmitidas em um microfone e provocavam choques no corpo do ator. Regurgitofagia, o livro, estava esgotado, por isso Melamed decidiu reeditá-lo. O espetáculo recebeu elogios de críticos como Gerald Thomas e Barbara Heliodora, ficou nove meses em cartaz e foi apresentado em Paris, Nova York e Berlim.

Como houve turnê fora do Brasil, o texto foi traduzido e incluído na nova edição, que também tem fotos de dois outros espetáculos ; Dinheiro grátis e Homemúsica ;, parte da trilogia na qual se insere Regurgitofagia. Melamed incluiu ainda novos escritos, alguns inéditos e outros que já haviam circulado na internet.

Há 13 dias, o ator encerrou as gravações da terceira temporada do Bipolar show, programa de entrevistas veiculado no Canal Brasil e com reestreia marcada para junho. No início do ano, ele interpretou o poeta Antenor Laval na série Dois irmãos, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, e em março estreou Monólogo público, novo trabalho no teatro no qual joga luz sobre as fronteiras entre o público e o privado em tempos de internet e redes sociais.

A seguir, Melamed fala sobre as mazelas brasileiras, o trabalho na televisão e no teatro e a eterna mania de misturar o máximo de linguagens possíveis em uma mesma produção.

; Entrevista // Michel Melamed


O que mais te preocupa hoje no Brasil?
A questão central do Brasil continua sendo a questão educacional. Mais do que querer defender um ponto de vista, o que me parece emergencial é que todos tenham instrumentos para defender seus pontos de vista. Isso seria a riqueza maior: a contribuição de todos e a possibilidade de mudanças históricas. Porque é surpreendente que décadas e décadas depois, as mesmas questões sejam repetidas. Para mim, nas últimas eleições foi chocante perceber que tudo se dava como 20 anos atrás: quem tem mais dinheiro leva, porque o povo trabalhador brasileiro não tem tempo de se informar e, talvez, não tenha nem os meios. As pessoas realmente decidem 24 horas antes em função de quem está no outdoor, então continua sendo o dinheiro que leva a eleição. E o Brasil vive um momento particularmente sombrio. A gente tem um presidente que é corrupto, cercado de corruptos e fazendo mudanças drásticas no país sem ter legitimidade para isso. É um momento grave. Concomitantemente, com tudo o que aconteceu desde as manifestações de junho (de 2013), forças muito reacionárias começaram a se manifestar em praça pública.

Muita gente diz que é bom que essas forças se manifestem para que as intenções fiquem claras...
Eu não acho não. Acho que o fascista e o nazistóide têm que ficar em casa dando com a cabeça na parede. Não acho que seja uma conquista que essas forças fascistas estejam em praça pública. É um momento preocupante, mas, por outro lado, também é um momento de responsabilidade em que todos somos chamados à arena pública para nos colocarmos. É um momento de crise, de fazer força na direção que a gente acredita, que no meu caso é uma direção progressista, plural. Por isso falei em educação, porque não sou detentor de uma verdade. Não me arrogaria essa posição. A posição que ouso defender é que as pessoas todas tenham instrumentos para participar desse debate. Grande parcela da população brasileira é alijada desse debate porque não tem condições mínimas de vida. O país está precarizado, sendo governado por pessoas que deveriam estar sendo julgadas e condenadas por crimes. É uma responsabilidade nos colocarmos e tentarmos, de algum jeito, retomar o trilho.

Seu espetáculo mais recente, Monólogo público, explora o comportamento nas esferas pública e privada. Por que esse tema?
Porque me pareceu curioso a encruzilhada em que esses temas se encontram. É, por exemplo, a questão das artes quando se fala da autoficção, uma coisa que não é relativamente nova, mas se você olhar em perspectiva vai ver que tudo é autoficção porque você sempre cria a partir de você. Historicamente, poderia dizer que toda criação sempre foi autoficcional, mas por outro lado parece que as redes sociais evidenciaram isso, então é uma discussão global. No mundo inteiro se fala dessa questão de quem você é na rede social, de quem você é na vida privada e como essas fronteiras vão sendo desguarnecidas. O que achei também interessante como intersecção é que esse é um dos temas reincidentes no país. Sérgio Buarque de Holanda já falava isso, sobre o homem cordial, o uso do sufixo ;inho; como um ardil para misturar o universo público e privado e todas as coisas que a gente tem visto, Geddel (Vieira Lima) que o diga com seu apartamento no prédio proibido. A cada dia é uma nova situação que aparece.

A experimentação da linguagem sempre foi algo que você buscou, tanto nos livros quanto nas peças. Por quê?
Acredito que o domínio de linguagens, o entendimento de linguagens seja um dos caminhos possíveis para que a gente se aproprie da nossa possibilidade de participação. No Monólogo público tem uma frase que me norteou que diz que a disputa não é pela narrativa, mas pela linguagem. A melhor forma de se disputar a narrativa é disputando a linguagem porque a linguagem é uma das ferramentas para se interpretar as narrativas. A história é contada pelos vencedores, mas se você tem ferramentas sobre como esse emissor está construindo o discurso dele, só assim você pode escutar a narrativa. Acho que meu interesse pela linguagem é esse: poder ter riqueza para a interpretação do mundo. Não vejo essas fronteiras tão claras, pelo menos nas coisas que tenho participado, elas são muito misturadas..

E a terceira temporada do Bipolar show, como vai ser?

Terminei de gravar os 26 convidados. Quando o canal me convidou para fazer a terceira temporada, a primeira coisa que pensei é que tinha que ser nova, apresentar outras coisas e, de alguma forma, tentar traduzir coisas que a gente está pensando agora. Se houvesse subtítulo, seria a temporada crua do programa e isso por várias razões, entre elas a situação do país e do mundo. Me pareceu que, na segunda temporada, a gente conseguiu cumprir maravilhosamente bem tudo que vejo de performático, para fora, com o público, improvisações e humor. E achei que a terceira temporada devia ir em outras regiões, então tirei todos os quadros do programa, tirei o público. É totalmente centrado nos dois artistas. E em consequência, acho que os encontros ficaram mais densos e a gente pôde falar mais, se emocionar mais.

SERVIÇO
Capa do livro Regurgitofagia; de Michel MelamedRegurgitofagia

De Michel Melamed.

Bertrand Brasil, 208 páginas.

R$ 59,90

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