Diversão e Arte

Escritora chinesa faz livro sobre a política do filho único na China

Em entrevista, Xinran conta como ficou chocada com essa geração

Nahima Maciel
postado em 23/05/2017 07:30
Xinran lembra que a medida já evitou o nascimento de 400 milhões de pessoas
Xinran Rue ainda se choca com algumas coisas. Muitas, na verdade. Apesar de ter passado boa parte da vida ouvindo as histórias mais tristes da China, de ter escrito sobre a condição das mulheres, das crianças, dos mais velhos e de uma porção de vítimas de guerras e opressão, a autora de As boas mulheres da China e As filhas sem nome ainda é capaz de se surpreender com histórias que ainda não foram contadas. A mais recente delas trata da primeira geração de crianças nascidas após a política do filho único. Introduzida na China em 1979, a medida evitou o nascimento de 400 milhões de pessoas desde que foi implantada. É o lado que a jornalista e radialista, radicada na Inglaterra há 20 anos, considera um ;presente; para a humanidade. Mas a política do filho único também tem outras facetas e uma delas foi ter modificado valores considerados fundamentais para a sociedade chinesa ao dar origem a uma geração de cidadãos criados como pequenos imperadores. Compre-me o céu ; A incrível verdade sobre as gerações de filhos únicos da China reúne 10 histórias de jovens adultos nascidos entre 1979 e 1984 e faz uma radiografia do efeito dessa política na sociedade chinesa contemporânea.


Professora na School of Oriental and African Studies na Universidade de Londres, com experiência em departamentos de estudos orientais em universidades como Harvard e Cambridge, Xinran escreve com um compromisso: tentar esclarecer o que ela considera uma total falta de informação do Ocidente quando o assunto é China. Conhecida como espécie de embaixadora cultural do Império do Oriente, ela comoveu o mundo ao narrar as histórias de mulheres que conheceu quando fazia um programa de rádio no país natal na década de 1980, anos antes da abertura econômica. Publicado em 2002, o livro retrata 15 personagens vítimas de uma sociedade patriarcal e conservadora. Em Compre-me o céu, Xinran se debruça sobre a prole dessa geração. Um retrato chocante e revelador que emerge das 344 páginas do livro.


Primeiro, é importante esclarecer que a política do filho único não era válida para todo o território chinês. Havia gradações e condições em que os chineses poderiam avançar até um terceiro ou quarto filho. Estima-se que, em 2007, 36% da população chinesa estava submetida à lei. Em 2016, a lei foi substituída e o número de filhos aumentou para dois. Xinran entrevistou mais de 50 filhos únicos para a reportagem, mas apenas 10 estão no livro. A autora procurou equilibrar as origens sociais e o gênero dos entrevistados, mas os relatos mostram uma história que se repete: únicas herdeiras de centenas de famílias, essas crianças são criadas isoladas do mundo e carregam nos ombros a responsabilidade de dar continuidade à família, uma tradição essencial na cultura chinesa. São mimadas e protegidas ao extremo, já que os pais têm medo de que qualquer coisa aconteça aos únicos rebentos. E crescem com enormes dificuldades de relacionamento em sociedade.


Xinran apresenta histórias chocantes, como a do estudante que nunca havia pendurado uma roupa sequer no armário e não sabia que lado da faca usar para cortar uma batata, ou das universitárias que não sabiam como são concebidos os bebês. Muitos desses jovens são enviados ao exterior para completar a formação após a graduação e, quando chegam no Ocidente, se deparam com um mundo que não está disposto a servi-los. Acabam com ódio dos pais ao perceber o quão despreparados estão para viver em sociedade. Em muitos casos, essa constatação leva ao corte dos laços familiares, o que gera desorientação e sofrimento de todos os lados. Assustada com as histórias, Xinran fundou, em 2004, a organização The mothers; Bridge of Love. Entre outras atividades, uma das funções é auxiliar esses jovens a reencontrar valores caros à cultura chinesa, mas também ajudá-los a compreender a si mesmos e suas origens. ;Quanto mais estou com eles, mais aprendo, mais ouço e mais percebo que esse é um grande tema para a humanidade e não só para a sociedade chinesa;, explica a autora, em entrevista ao Correio.;Eu não ousava escrever esse livro porque sou uma mãe da política do filho único, faço parte dessa política. E tenho lutado com meu filho e com essa questão da sociedade chinesa do filho único. E tudo isso me assusta.;


Em entrevista, Xinran conta como ficou chocada com essa geração
Compre-me o céu ; A incrível verdade sobre as gerações de filhos únicos da China

De Xinran. Tradução: Caroline Chang. Companhia das Letras


Uma constante preocupação sua e dos entrevistados no livro é o quanto a China é incompreendida no Ocidente. Por que isso acontece?
A China nunca se abriu realmente para o mundo, e isso em muitos níveis. No nível internacional, porque desde o século 19 a até o último imperador, a China nunca realmente se assentou: houve guerra civil, Segunda Guerra, guerra política, Revolução Cultural. Isso até o final do anos 1970. E durante essa parte da história, o Ocidente manteve distância. Por causa da política, nós realmente fechamos a porta. Além disso, os estudos sobre a China hoje no Ocidente são muito limitados. E se você não tem esse tipo de informação, de educação e de comunicação, então não há muito conhecimento sobre a China. E claro, a China tem a censura e a propaganda. Para o Ocidente, nossa história é preto no branco, mas você não consegue realmente entender o que a China é se pensar assim. O Ocidente não entende a China e não é apenas uma questão do idioma: há uma arrogância colonial, especialmente na Inglaterra e na França. E nós não sabemos como lidar nem como comunicar com o Ocidente.


Como as histórias de Compre-me o céu retratam a China contemporânea?Durante as turnês para lançar meus livros, passei a entender que as pessoas não tinham noção alguma do que era a política do filho único. E também tinham uma ideia muito limitada do que é a geração mais jovem. Escrevi o livro como um convite para as pessoas ouvirem essa geração. Precisamos ouvi-los porque esse tipo de situação é muito única na história da humanidade. É uma geração que está fazendo a China se mover muito rapidamente.


Como?
Eles podem tornar a China rica? Sim. Mas a política do filho único tem dois lados. Um lado é o fato de ser um presente. Durante a aplicação dessa política, durante 36 anos, a China evitou que a população (da Terra) aumentasse em 400 milhões de pessoas. Isso é um presente para o mundo. O outro é que essa política deu à China a oportunidade de resolver um desequilíbrio entre a população e a comida. Também é preciso dizer que, por causa dessa política, a vida das meninas realmente melhorou. Elas passaram a ter a chance de conseguir um emprego e uma educação básica que permitem que tenham uma voz. Antes, não tinham.


Mas há efeitos colaterais...
Sim, um deles é que essa política foi aplicada muito rapidamente e sem o suporte do governo, sem conhecimento social nem educação básica educacional. Quando começou, as famílias entraram em pânico. E essa política realmente quebrou os valores tradicionais de família na China. Essas crianças também estão lutando. Suas vidas, desde muito cedo, não têm muita noção das convenções sociais. Nós aprendemos como nos comportar socialmente, como compartilhar com nossos irmãos e irmãs. E também temos tradições como respeitar os mais velhos, respeitar a educação, os pais. Mas por causa da política, isso foi quebrado e a sociedade ficou muito frágil. As pessoas não sabem quem está certo ou errado, elas só acreditam no seu filho único.


O que acha que vai acontecer com os filhos dessa geração do filho único?
Em outros países, se você perguntar aos jovens sem o que eles não podem viver eles vão dizer família, amigos. Só os chineses vão dizer ;sem internet e celular, não posso viver;. Eles não incluem a família. Eles têm tudo. Mas vivem em uma ilha. Todos os anos fazemos treinamentos em muitos países com jovens chineses para que possam encontrar seu verdadeiro valor. Eles acham que têm tudo, mas na verdade não têm nada. Isso é uma coisa. A outra é que eles realmente vivem uma luta no que diz respeito a como lidar com o casamento. Durante muito tempo, eles foram o centro da sociedade e de repente, isso é quebrado e o centro se desloca. Isso piora quando eles têm um bebê: eles se sentem lesados porque descobrem que toda a geração mais velha passa a prestar atenção no bebê e não neles. A maioria dos jovens pais que vêm da política do filho único não quer filhos, eles odeiam a ideia de filhos. Esse é um dos maiores problemas da China no momento. Nas cidades grandes, os jovens instruídos não querem ter filhos.


Você tem escrito sobre mulheres durante todos esses anos. Você se considera uma feminista?
Já me fizeram essa pergunta muitas vezes, mas nunca encontro a resposta. Na China, eu diria que sim porque quero que as mulheres tenham sua própria voz, seus próprios direitos, apoio especial para as mães. Mas no Ocidente, quando ouço feministas dizerem ;eu posso ser soldado, posso carregar tanto quanto um homem, não preciso de um homem; eu digo ;espere, eu não posso;. Não posso porque nossa natureza é completamente diferente e temos que aceitar isso. Discordo dos padrões ocidentais feministas que dizem que tudo deveria ser igual para os dois sexos. Acho que isso é injusto com as mulheres. E também discordo da China, onde tudo tem que seguir o homem.


O feminismo existe na China? Como é a situação de mulheres feministas por lá?
Essa ideia chegou à China na nossa primeira Revolução Cultural, durante os 1950 até 1970. Durante esse período, as mulheres podiam escolher o sobrenome no casamento, tinham o direito de cortar o cabelo, podiam ir à escola. Mas depois, por causa da guerra civil, não tivemos realmente a chance de viver isso. Depois da Revolução Cultural de Mao, que é sempre visto como uma pessoa do mal mas fez algumas coisas boas, deu às mulheres os direitos de ;alcançar metade do céu; (expressão cunhada por Mao Tsé-Tung para explicar que homens e mulheres tinham direitos iguais). O problema é que, durante o dia, ficávamos com metade do céu, como os homens, mas quando voltávamos para casa, voltávamos às tradições. Muitas mulheres me disseram ;eu não quero me libertar porque isso significa que tenho que fazer o trabalho dobrado;. Feminismo é um movimento que aconteceu, na China, nos últimos 15 anos porque as gerações mais jovens, quando crescem, são forçadas a casar de maneira tradicional e muitas jovens chinesas independentes não querem seguir isso. Esse grupo de jovens, agora com seus 40 anos, são realmente as primeiras feministas da China.


Um ponto ao qual você volta muito no livro é a relação dos jovens chineses com suas próprias histórias e seu patrimônio, o desconhecimento que eles têm dessa história. Por que isso acontece?
O primeiro problema é nossa cultura. Nossa cultura escrita é muito ruim. A primeira coisa que os imperadores faziam quando chegavam ao poder era mudar a história, os arquivos. Como não temos uma religião nacional, o budismo é algo muito recente, então essa era a primeira coisa que faziam. Essa é nossa cultura política. E outro problema é as famílias: os mais jovens não tinham o direito de perguntar aos mais velhos como eles se conheceram, de onde vieram. Não tínhamos o direito. Antes do comunismo, tínhamos um livro de família com a história das gerações, era como uma árvore de família. No livro estava escrito quem casou com quem, onde. E havia um conselho local também com muitos registros. Tudo isso foi destruído na Revolução Cultural. A outra é que, durante anos, você nunca sabia que lado era o certo. E depois tivemos a censura. Se você ler um livro de história chinês dos últimos 100 anos, a Revolução Cultural ocupa apenas meia página. Então, quando as pessoas criticam os jovens chineses, quando falam que eles não têm ideia da própria história, sempre digo que têm que entender que eles não têm fonte de informação, não está nos livros e as famílias não falam. Agora os jovens chineses estão tentando ler a história da China pelo que foi publicado no Ocidente.


Seus livros são publicados na China?
O primeiro foi publicado há dois meses e logo pararam de vender porque estava vendendo bem. Eles se assustaram. Meu livro é de não ficção e tento dar uma voz à história e às gerações que foram vítimas e silenciadas. Acredito que história não pertence apenas aos políticos ou aos vencedores. Mas na China isso é um tabu. E a censura na China é interessante. Se você publica algo errado, pode perder o emprego. As pessoas ficam assustadas porque não há clareza sobre o que se pode e o que não se pode fazer. Esse é o problema. Não temos um sistema legal independente. Melhorou muito nos últimos 40 anos, pelo menos as pessoas têm comida, um teto, emprego. Mas pagamos um preço enorme por isso.

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