Dono de uma obra niilista de rigor plástico cirúrgico e secura afetiva extrema, o diretor austríaco Michael Haneke já tem duas Palmas de Ouro em seu currículo, conquistadas pelos filmes Amor (2012) e A fita branca (2009), mas, ainda assim, ele veio a Cannes, em 2017, com fome e fôlego para levar uma terceira. Happy end, seu trabalho mais recente, sufocou a Croisette ao usar a aristocrática família francesa, os Laurent, como símbolo das patologias europeias. A lenda Jean-Louis Trintignant é Georges, o patriarca. Isabelle Huppert e Mathieu Kassovitz estão entre seus parentes.
Com uma direção cirúrgica, pautada por um clima de tensão crescente, Haneke cria em Happy end a crônica da atomização da burguesia europeia, a partir de um clã de alta classe média em erosão afetiva e financeira, entre tragédias e processos judiciais. Já no início, uma sequência sombria: uma menina filma num iPhone um jogo cruel com um hamster alimentado com comprimidos de dormir. É uma metáfora para a opressão dos pobres, que parte de um clã com a própria morte anunciada.
Até o momento, os filmes com maior favoritismo para levar a Palma são o drama francês 120 batimentos por minuto, de Robin Pompillo, sobre o movimento ativista de defesa dos soropositivos nos anos 1990; e a comédia sueca The square, de Ruben Ostlünd, sobre o universo das artes plásticas. O russo Loveless, uma tragédia pilotada por Andrey Zvyagintsev (de Leviatã) sobre um ex-casal atrás do filho sumido, também foi um ímã de elogios da crítica. E devem sobrar troféus para a atuação de Louis Garrel como o jovem Jean-Luc Godard em Le redoutable; e para o roteiro da ;dramédia; The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach.
Na entrevista a seguir, Haneke fala de suas escolhas estéticas.
QUATRO PERGUNTAS / Michael Haneke
O que a família Laurent simboliza?
O autismo ao nosso redor e o impasse que o excesso de informação provoca em relação a nosso entendimento da Realidade. Não saberia dizer o que esses personagens revelam. Não costumo explicar minhas ideias. Elas só ganham sentido no fazer, no filmar. Meu desafio é criar um clima que contagie a plateia e que a conduza a discussões.
Seu estilo seco, de planos longos, é marcado pela precisão técnica. Como o senhor constrói sua linguagem?
Com o cuidado de não cair em formas de espetacularização. Faço um storyboard de tudo para poder criar os planos com controle, sem perder a sensação de surpresa. Mas o que me surpreende não são boas atuações. Eu já escalo ciente de que tenho grandes parceiros no elenco, capazes de me oferecer o melhor. O que me surpreende é a técnica: o que a câmera extrai, o que a montagem gera.
Seu cinema é chamado de niilista, por ser marcado pela desesperança. O que move esse seu olhar descrente?
Existem problemas reais no mundo, de fundo histórico, que chegam a mim quando mantenho os olhos abertos ao real. Mas não tenho uma abordagem prévia dos temas. Tenho é o interesse em provocar.
Qual é o lugar da violência nos seus filmes?
Um lugar que fuja do espetáculo, mas que gere debate. Cada filme meu é diferente, mas em todos há a necessidade de se entender o mundo para além da informação demasiada.