Diversão e Arte

Enrica Fico fala ao Correio sobre legado de Michelangelo Antonioni

A viúva do diretor italiano, fala sobre a relação do cineasta com a felicidade, o cinema, a indústria, a intuição e o desespero

Ricardo Daehn
postado em 27/05/2017 07:31

Enrica fala, ao Correio, dando vazão ao fluxo de pretensões do cineasta, atualmente, celebrado em mostra no CCBB

Austero, enigmático e assombroso: apresentado deste modo, o cineasta Michelangelo Antonioni, na edição do Oscar de 1995, foi aplaudido de pé por figurões como Quentin Tarantino, John Travolta, Susan Sarandon e Tom Hanks. Quem segurou o troféu da Academia foi a esposa dele, Enrica Fico, que serviu como intérprete para o mestre da sétima arte que, à época da premiação, ainda sofria os efeitos de um derrame ocorrido uma década antes. ;É muito belo receber este prêmio, e tão mais bonito encontrar todo este amor (emanado da plateia). Às vezes, as palavras não são necessárias, em decorrência justo desse amor;, declarou Enrica, naquela ocasião. Uma década depois da morte do amado, Enrica fala, ao Correio, dando vazão ao fluxo de pretensões do cineasta ; atualmente, celebrado em mostra no CCBB ; e também contando da vida conjugal de um matrimônio testado até pelos 42 anos de diferença de idade entre ambos.


Dono de uma filmografia valorizada nos mais diversos festivais, entre os quais Veneza, Berlim e Cannes, Antonioni, nos mais de 20 anos de relação com Enrica, transmitiu ensinamentos. ;Ele transformou por completo minha capacidade de enxergar;, observa a também cineasta. Fare un film pour moi c;est vivre, produção assinada por Enrica, examina justo os bastidores. O documentário se fixa nos bastidores de Além das nuvens, derradeiro longa de Antonioni, e que contou com um apoio precioso, dada a colaboração de Wim Wenders (como eventual diretor-substituto, pela fragilidade de Antonioni). Ambos os títulos estarão em cartaz na programação de hoje do CCBB.

Entre os astros com quem trabalhou, Antonioni teve apreço especial por Jack Nicholson, justamente uma ponte entre a desenfreada produção de Hollywood e o cinema particular do mestre de obras como O grito e A noite. Nicholson, certa ocasião, deu pistas para o desvendar do cinema do mestre. ;Nos espaços vazios do silêncio no mundo, ele encontrou metáforas que iluminam o canto da mudez dos nossos corações;, ressaltou. Jack e Michelangelo trabalharam juntos em O passageiro ; Profissão: repórter (1975), com direito a locações pelo mundo, em países como Argélia, Alemanha, Espanha e Reino Unido.

[SAIBAMAIS]



;Michelangelo nunca foi um turista. Caso fosse para algum lugar, era para estabelecer um enredo. Ele foi para o Brasil à cata de um filme ambientado na selva e que não pôde realizar: Technically sweet;, observa Enrica, ao falar dos hábitos do marido. Na conversa, ela explica a simpatia do mestre pelo Brasil. ;Antonioni adorava a resistência das forças tanto das pessoas quanto da natureza no Brasil. Gostava da música, dos olhares típicos dos brasileiros, e da língua de vocês. Ele tinha muito carinho com o enredo daquele filme (Technically sweet), mas diante de impedimentos técnicos, ele teve que modificar o roteiro e realizar O passageiro: profissão repórter;, ressalta.



;Antonioni era muito exigente. Ele não gostava, por nada, de toda a violência nos filmes americanos, e que confrontava a poesia e o talento dos grandes diretores de cinema;
Enrica Fico, cineasta e viúva do diretor Michelangelo Antonioni




Aventura Antonioni
CCBB (SCES tc. 2, lt. 22). Programação segue até segunda-feira. Hoje, às 13h30, Fare un film pour moi c;est vivre (Itália, 1995, documentário, 52min), de Enrica Antonioni. Às 15h, Além das nuvens; às 17h30, Crimes da alma (1950) e às 19h30, O grito (1957). Ingressos, R$ 10.



Entrevista / Enrica Fico Antonioni

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De que forma Antonioni a transformou?

A ambição dele era fazer filmes independentes de compromissos ou acordos. Era um homem empenhado e tenso, e que mantinha inabalável a visão devota de sua completa intuição. Claro que ele estava sustentado por curiosidade e por seu conhecimento. Antonioni transformou por completo minha capacidade de enxergar, de ver para além das formas, de discernir o mais tênue dos temas, perseguir o mais sutil sentimento, como numa forma de perseguir obsessivamente a sondagem da verdade.


Antonioni era devotado a público de elite ou gostava da camada popular?
Ele sempre enfatizou que fazia filmes sem se importar com um público específico. Lembro dele vividamente dizendo: ;Deveria fazer filmes para os japoneses ou para os espanhóis? O público é muito diversificado, nos mais diferentes países. Não: faço filmes para mim mesmo e tento dar a todos a maior beleza possível;.


Ainda existe algo inédito?
Em forma de verdadeira ópera, ele deixou filmes, escritos e quadros. Retrospectivas são montadas, a cada momento, em várias partes do mundo. A todo instante, descobrimos uma nova verdade na obra dele; coisas que não fomos capazes de perceber antes, mas que ele, sim, foi capaz de notar.


Qual era o tipo de filme que tocava, ao final da vida, o espírito de Antonioni?
Michelangelo ia praticamente todos os dias ao cinema, mas na maior parte das vezes descontente com o que havia visto. Ele era muito exigente. Ele não gostava, por nada, de toda a violência nos filmes americanos, e que confrontava a poesia e o talento dos grandes diretores de cinema.


A ausência de entendimento, por parte do público, ocasionava que tipo de responta em Antonioni? Como via as pessoas que recebiam com estranhamento as propostas dele para cinema?
Ele mantinha o compromisso com a verdade dele. Antonioni nunca abandonou a produção dele, com ênfase em roteiros. Os filmes dele ultrapassavam uma década de entendimento, uma vez realizados. Ele mesmo assistia aos filmes, surpreso, por vezes: ;Que doido que fui nesse!’, dizia. Mas ele amava a própria produção, como se tivesse brotado de outro criador.


Ao final da vida, ele ainda foi uma pessoa feliz?
Antonioni sempre foi desesperado, mas nunca abandonou a felicidade. Ele amava a vida, demasiadamente, e tinha tanto respeito por ela que jamais a viveria sem dignidade. Ele tentou, o quanto pôde, ser feliz.

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