Diversão e Arte

Exposição traz a Brasília a veia expedicionária de Flávio de Carvalho

Ele é um dos artistas mais transgressores da história da arte brasileira

Nahima Maciel
postado em 06/06/2017 07:30

Da viagem à Amazônia, Flávio Carvalho trouxe um filme e muitas fotografias

O lado transgressor de Flávio de Carvalho chegou a ser confundido com loucura, e talvez até fosse, mas não havia nada de patológico ou que precisasse ser consertado na psiquê do artista. Graças à loucura, ele fez o Brasil vislumbrar uma fagulha do que seria a arte contemporânea brasileira. É esse artista visionário e de vanguarda que a exposição Flávio de Carvalho ; Expedicionário traz à Caixa Cultural a partir de hoje.

A mostra reúne fotografias, filmes e objetos do fundo Flávio de Carvalho dentro da Unicamp, guardiã da obra do artista. O material foi produzido durante dezenas de viagens realizadas entre as décadas de 1930 e 1950. São incursões pelo Brasil, pela América Latina e Europa, deslocamentos que o artista chamava de expedições e encarava como verdadeiros percursos performáticos. ;É um material inédito;, garante Amanda Bonan, que divide a curadoria com Renato Rezende. ;Estamos apresentando o Flávio de Carvalho como um etnógrafo malcomportado. E o apresentamos como um artista moderno e contemporâneo, porque vários artistas contemporâneos fazem esse tipo de viagem, residências e tal, mas ele fez isso um pouco avant la lettre.;


As expedições eram quase performances para o artista

Desenhista e pintor de qualidade reconhecida por eventos como a Bienal Internacional de Arte de São Paulo e pela Bienal de Veneza, Flávio de Carvalho ficou muito conhecido pelas Experiências. Espécies de performances nas quais questionava valores como o puritanismo e as convenções sociais, as experiências resumiam o lado mais transgressor do artista. Faziam parte dessas ações andar na contramão de uma procissão e caminhar pelas ruas de São Paulo com trajes inusitados, como uma saia e camisa de mangas bufantes. Era a maneira de Carvalho questionar hábitos nada tropicais como o terno e a gravata ou demonstrar suas convicções de ateu confesso.

Etnografia

Manuscritos com os originais dos textos de Flávio de Carvalho fazem parte da mostra

As expedições são um lado menos evidente desse conjunto de ações, mas entram no mesmo rol das experiências. Das viagens, ele trazia vídeos experimentais, fotografias e objetos para construir uma espécie de etnografia que bebia em diversas disciplinas, da antropologia à arquitetura. Em 1934, durante uma viagem à Europa, ele escreveu o livro Os ossos do mundo, uma coletânea de observações sobre os países visitados. Da viagem à Amazônia, ele trouxe o filme A deusa branca, uma história surrealista sobre uma menina branca raptada pelos índios. O artista também passou pelo Paraguai e pelos Andes, dos quais trouxe fotografias e uma série de documentos expostos na Caixa. Araguaia e Peru também fizeram parte do roteiro.

Formado em engenharia e arquitetura na Inglaterra, onde morou até 1922, Flávio de Carvalho era filho de uma tradicional e rica família paulistana. Excêntrico, nem sempre era levado a sério, embora tenha se tornado um ícone da interdisciplinariedade nas artes plásticas brasileiras. ;Ele se dizia arqueólogo malcomportado, porque ele o compara ao psicólogo malcomportado. A psicanálise também era do interesse dele. Enquanto artista, entrava nessas áreas científicas com uma vontade de transgredir, com uma atitude de deturpar um pouco o rigor científico porque, para ele, esse rigor não permitia que as potencialidades dos artefatos arqueológicos pudessem ser exploradas com liberdade. Ele era um malcomportado porque era livre, não queria ficar preso a leituras acadêmicas;, explica o curador Renato Rezende.

[SAIBAMAIS]Provocar a moral cristã, defender um mundo tecnologizado e o que chamava de uma potência primitiva, na qual a liberdade sexual e de expressão eram pontos centrais, estava na cartilha de Carvalho, seja nos nus femininos que pintava ou desenhava, seja nas experiências ou nos documentos trazidos das viagens. ;Ele era muito influenciado por (Friedrich) Nietzsche, uma leitura às vezes um pouco rasa de Nietzsche, mas com foco na questão mais forte de destruir alguns alicerces de uma civilização muito pudica naquele momento;, conta Rezende.

TRÊS PERGUNTAS PARA: Renato Rezende

A grande contribuição de Flávio de Carvalho para a arte brasileira foi com as performances. Por que?

Ele também foi um pintor e um desenhista bastante completo. As performances, como a Experiência n; 2, em que ele anda ao contrário numa procissão, ele nunca chamou de ações artísticas, eram pesquisas de psicologia de massa. A posteriori, essas ações se tornaram o legado mais importante do Flávio de Carvalho. Com elas, ele faz um link direto para o Hélio Oiticica, para a geração 1960 e também para o contemporâneo. Isso bastante tempo antes de tudo acontecer.

O que era o Brasil naqueles anos 1930?

O Brasil tinha acabado de entrar no Estado Novo, tinha saído da política do café com leite, ou seja, a oligarquia rural continuava tendo grande parte do poder. Era um país muito periférico, muito atrasado e São Paulo era uma cidade pequena, uma pequena província que dava indícios de um vigor de crescimento, mas ainda muito incipiente. O Brasil dos anos 1930 era uma periferia de fato. Mas com uma vontade de se modernizar muito grande, teve o movimento modernista e tal. O Flávio de Carvalho tinha essa vontade de modernizar o país.

E a arte dele, como era recebida?

Ele sempre foi considerado um bom pintor e um excelente desenhista. As ações, os projetos arquitetônicos não eram muito bem recebidos, eram bastante polêmicos. E como era uma pessoa midiática, da elite de SP, ele tinha acesso a colunas de jornais, então escrevia colunas falando sobre moda. Sempre foi muito polêmico, uma espécie de dândi. Muita gente não o levava a sério e era uma figura, às vezes, um pouco ridicularizada. Mas a força dele como pintor nunca foi negada, tanto é que ele participa da Bienal de Veneza e da Bienal de São Paulo, em 1951.

SERVIÇO
Flávio de Carvalho ; Expedicionário
Abertura hoje, às 19h, na Caixa Cultural (SBS Quadra 4 Lotes 3/4). Visitação até 28 de agosto, de terça a domingo, das 9h às 21h. CAIXA Cultural Brasília | Galeria Vitrine Abertura: 06 de junho de 2017, às 19h

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação