Severino Francisco
postado em 12/08/2017 07:31
Rubem Braga não escrevia nos papiros da eternidade; batucava suas crônicas no papel precário dos jornais, em contagem regressiva dramática contra os ponteiros dos relógios e do deadline da edição. Nessas condições, mesmo os autores de maior categoria podem ver a qualidade da produção comprometida. No entanto, ele conseguiu alcançar um nível impressionante para quem se autointitulava uma máquina de escrever, ;com algum uso, mas ainda em bom estado de conservação;.
Recentemente, foi publicada uma preciosa caixinha com três volumes de crônicas inéditas sobre artes plásticas, política e música. Mas, quando imaginávamos que a fonte havia secado, eis que surge um novo volume, com 25 textos do capixaba: O poeta e outras crônicas de literatura e vida (Ed. Global).
[SAIBAMAIS]Da pena de Braga escorre lirismo, humor e ironia ao traçar retratos agudos de amigos: Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, José Lins do Rego, Joel Silveira, Mario Pedrosa, Rodrigo de Melo Franco, Aníbal Machado e Manuel Bandeira, entre outros.
Embora magrinha, essa coletânea reúne alguns textos antológicos e fundamentais para entender a arte de ver, de escrever e de viver de Braga. Um que merece destaque é o dedicado ao poeta Manuel Bandeira, a quem Braga reconhece na condição de mestre de uma escrita clara, simples, limpa e fluente. A poesia de Bandeira é uma das fontes puras em que Braga bebeu.
Durante certo tempo da infância e da adolescência, Bilac havia sido o poeta de sua preferência: ;Seu livro era como um amigo íntimo que me fazia confissões e ouvia as minhas;. No entanto, depois de Bilac, o poeta que mais o impressionou foi Manuel Bandeira. O primeiro livro que lhe caiu nas mãos foi Libertinagem, ;em 1930 ou em 1931;.
Namoradas
No entanto, o êxtase maior ocorreu na leitura de Poesia, com três livros anteriores do poeta: ;Minha adesão a Bandeira foi imediata e completa. Ele me ajudou não apenas a namorar as minhas namoradas e a me conformar com o desprezo de outras, como a suportar rudes golpes afetivos que sofri, com a morte de pessoas queridas. Os versos de Bandeira passaram a fazer parte de minha vida íntima, ficaram ligados a momentos, pessoas, emoções; até hoje;.
Braga lembra da surpresa e vaidade que sentiu quando, um pouco mais tarde, fazia crônicas para um jornal de Belo Horizonte, e lhe contaram que várias pessoas pensaram que Rubem Braga era pseudônimo de Manuel Bandeira: ;É que na verdade sofri uma grande influência de Manuel; não de suas crônicas, pois estas eu não conhecia então, mas de seus poemas. A linguagem limpa e ao mesmo tempo familiar, às vezes popular, de muitos de seus poemas, influiu em minha modesta prosa. E da melhor maneira: no sentido da clareza, da simplicidade, e de uma espécie de franqueza tranquila de quem não se enfeita nem faz pose para aparecer diante do público. Acho que nenhum prosador teve influência maior em minha escrita do que o poeta Manuel;.
Braga faz um curioso comentário: ;Sim, muita coisa ele me ensinou. Só não me ensinou o milagre da condensação lírica e musical, o pulo do gato da poesia; mas também um escrevedor de jornal e revista não precisava saber tanto...; Era precisamente esse milagre da poesia que Bandeira celebrava no cronista, escrevinhador precário dos jornais.
Ao deslocar o foco para Joel Silveira, Braga toca em outra dimensão essencial do jornalismo; a reportagem. Observa, com muita pertinência, que, embora Joel tenha se tornado famoso por algumas reportagens, logo ele abandonou o gênero para sobreviver em outras funções nos jornais, sina de quase todos os repórteres talentosos: ;A história profissional de Joel Silveira é testemunha do grande erro do jornalismo brasileiro: o plano inferior em que é deixado o repórter;.
O próprio Braga se autoironiza que isso devem ser grunhidos de um velho dromedário que não compreende a imprensa moderna. Mas, na verdade, a observação aguda dele ressoa nesses tempos em que as facilidades da internet estimulam a preguiça do repórter e empobrecem o jornalismo.
A coletânea é excelente. Braga lança um olhar original sobre todos os personagens amigos. No entanto, eram, antes de tudo, amizades culturais, fundadas em uma admiração verdadeira e não em relações de compadrio. Neste sentido, Braga celebra o irreverente Agrippino Grieco, franco atirador, que fustigou a mediocridade das letras e as armações limitadas da política literária. Braga reconhece que faz muita falta um crítico com essa coragem e se esquiva com muito humor: ;Perguntareis e tu, oh Braga, por que não fazes o que pregas? Direi que sou maior de 70 e não tenho obrigação nem de votar;.
O poeta e outras crônicas de literatura e vida
Rubem Braga/Global Editora, 102 páginas