Diversão e Arte

Obra de García Lorca permanece viva 81 anos depois da morte do poeta

O trabalho do escritor converge entre erudito e popular

Roberto Medina - Especial para o Correio
postado em 19/08/2017 07:00 / atualizado em 19/10/2020 12:13
García Lorca: com a caneta na mão foi considerado mais perigoso com a caneta  na mão do que muitos homens empunhando armas

No meio de uma convulsão social e política, o maior escritor espanhol, ao lado de Cervantes, Federico García Lorca foi considerado mais perigoso com uma caneta na mão do que muitos homens empunhando armas. As forças conservadoras da Espanha renegavam a democrática República e se alinhavam aos ideais da Itália fascista e aos da Alemanha nazista, de acordo com o historiador e professor K. Caetano.

Em julho de 1936, começou o levante sanguinário, com retaliações, perseguições e execuções sumárias de membros da Frente Popular (republicanos, socialistas, camadas populares e comunistas), e, por fim, a garra pesada dos nacionalistas apertava o gatilho dos fuzis, tendo em mira os mais de 500 mil corpos fuzilados ou tombados nas batalhas até 1939. Depois, erigiu-se a Ditadura Franquista, findada em 1975, com a morte do general Francisco Franco.

No primeiro mês da Guerra Civil Espanhola, García Lorca, preso dia 16 de agosto, em Granada, foi assassinado entre os dias 18 e 19. O corpo do poeta e dramaturgo tombou, porém sua obra artística arvora-se por todos os continentes, ao encalço do mundo e do humano.

Nascido em 1898, García Lorca sai de Granada para continuar os estudos em Madri, fica no ambiente cultural e intelectual da “Residência dos Estudantes”, onde entrou em contato com as vanguardas europeias e conviveu com ideias dos pensadores Miguel Unamuno e Ortega y Gasset e com artistas como Salvador Dalí (pintura), Luis Buñuel (cinema), Rafael Alberti (poesia), entre outros. Eles configuraram a nominada “Geração de 1927” ou “Geração da Ditadura”.

García Lorca também foi pianista, compositor, folclorista, desenhista, cenógrafo, roteirista, ator e diretor de teatro. Para ele, “a poesia é algo que anda pela rua”. E é na região da Andaluzia mítica que seu espírito se forja e lhe dá o partido dos oprimidos: muçulmanos, ciganos, negros, judeus e campesinos. O cancioneiro popular de Granada e outras cidades estão presentes no seu imaginário poético.

Exatamente, no momento de experimentalismos do início do século 20, García Lorca vai beber nas fontes da tradição e da cultura popular para encontrar o ponto de criação, num sentido amplo, na retaguarda da vanguarda. Ele flerta com o surrealismo, mas com o devido “entortamento” lorquiano da linguagem.

A expressão autoral de García Lorca é observada nas peças: Bodas de Sangue, Yerma e A Casa de Bernarda Alba. Esse teatro é novo na Espanha das décadas de 20 e 30: questionador, poético, radical, porém descomplicado e popular. Segundo Dra. Luciana Montemezzo: “A voz de García Lorca costuma ser retomada em momentos de cerceamento de liberdades individuais e coletivas. Como tal, tem sido legítima representante daqueles que lutam por igualdade e justiça social.”

Intensidade pessoal

No conjunto da obra, a ânsia por liberdade e por negação da tradição sufocante atinge o pico mais alto do falso cenário feliz das relações humanas. Para além da linguagem, da expressão e da comunicação, a obra lorquiana entra como bisturi cirúrgico na história e se posiciona com intensidade pessoal, indicando uma ideia que busca a emoção e a reflexão poéticas.

Tal marca ou segredo do estilo de García Lorca “é uma lembrança encerrada no corpo do escritor”, diria Roland Barthes. Para Dra. Valéria Brisolara, “é na leitura que o autor morto [na escrita] volta como uma sombra ou como fantasma, pois retoma o corpo do texto”.

Na criação literária, García Lorca reúne valores culturais da arte espanhola e ideias estéticas com a tradição culta e popular. A força instintiva e imaginativa encontra a síntese na metáfora do “duende” andaluz, elemento da natureza, das raízes profundas do ser e da reação anímica e inconsciente. O “duende” tem potência terrena, mortal e demoníaca, atuando no artista. Assim, o fazer criativo não é mera inspiração, exige trabalho – “esfuerzo”.

O mundo poético é inacessível e iluminado por uma consciência mais clara, feito milagre e mistério. Às vezes, o estado consciente e místico da criação artística é “o estado em que Deus socorre sem ser procurado”. Leiamos, por exemplo, algumas obras do poeta granadino: Livro de Poemas, Ode a Salvador Dalí, Canções, Romanceiro cigano, Poema do canto jondo, Poeta em Nova York, Divã do Tamarit ou Sonetos do amor obscuro.

Desafio artístico

A vivência de García Lorca conecta-se com sua produção. As diversas conferências-recitais efetuadas na Espanha, nos Estados Unidos e em Cuba (de 1929 a 30), na Argentina e no Uruguai (de 1933 a 34) revelam seu projeto estético-ideológico. Assim, o gesto artístico ia se descobrindo e desvelando a lógica heraclitiana: “a natureza ama se ocultar”. Porém, o processo criativo de García Lorca contém a máxima: “a vida se renova pela morte”.

O escritor é testemunha e partícipe de seu tempo histórico, de suas circunstâncias e das águas turvas que o circundam. García Lorca já era famoso e popular na Espanha e no exterior, pôde desfrutar um pouco disso. A cada novo desafio artístico, munia-se de autoanálise e de autocrítica. Assim, a consciência pragmática da substância necessária para ser poeta tornou-o esse “serafim maldito”, enduendado e universal. Se García Lorca teve execução sumária aos 38 anos pelo grupo político-militar e fascista – Falange, o legado dele resiste pleno na arte dos mistérios das coisas e dos homens: “só o mistério nos faz viver”, suspira o artista e homossexual granadino.

Hoje, dizemos com García Lorca: “o amor dorme no peito do poeta”; mesmo que haja um punhal contra ele, faminto pela seiva lírica. É preciso respeitar o homem na totalidade, epicentro da criação poética e do desejo.

Roberto Medina é escritor, dramaturgo, crítico literário e crítico de imagem visual
 
 
 
 
 


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