Diversão e Arte

Conheça artistas negros fundamentais para a cultura norte-americana

A cultura americana não tem nada da supremacia branca. Pelo contrário, alguns dos melhores produtos culturais do país nos últimos anos foram criados por artistas e escritores negros

Alexandre de Paula, Nahima Maciel
postado em 27/08/2017 07:00
Ilustração sobre cultura negra

Charlottesville, Virgínia, 2017: 3 mortos, mais de 30 feridos. Baltimore, Maryland, 2015: um jovem adulto negro morto, 250 presos. Ferguson, Missouri, 2014: um adolescente negro morto, mais de 50 presos. Cincinnati, Ohio, 2001: um jovem adulto negro morto, 82 presos. A lista é extensa e chega ao século 19. Em julho de 1866, um grupo de brancos radicais republicanos atacou negros que protestavam em Nova Orleans. O enfrentamento resultou em 44 mortos. Todos afroamericanos. Os ataques revelam um lado sombrio da democracia norte-americana, mas, a cada episódio, há vozes que se erguem no mundo da cultura para mostrar que o ódio que resulta na segregação racial é pouco para calar uma produção cultural extremamente rica e profícua.

O Correio fez um recorte ; e é bom lembrar que isso é uma seleção difícil, porque a quantidade de nomes é enorme ; dos artistas negros responsáveis por colocar a cultura dos Estados Unidos entre as mais consumidas do mundo. Eles podem ser ativistas ou não ; essa não é uma obrigação ;, escrever ou falar sobre a realidade de uma sociedade na qual o racismo é ainda algo muito vivo ou não, pouco importa. O importante é que, para eles, as barreiras raciais podem até ser obstáculos, mas isso não impede que, com arte, suas vozes ajudem a delinear a identidade de um país que amargou quase um século de escravidão seguidos de 100 anos de segregação racial.
Toni Morrison ganhou o Nobel de Literatura em 1993
Autora de 11 livros, Toni Morrison ajudou a elevar a literatura norte-americana ao mais cobiçado dos patamares. Em 1993, levou o Nobel de Literatura por ser considerada pela Academia Sueca como dona de um texto de ;força visionária e poética, que dá vida a um aspecto essencial da vida americana;. De fato, os romances de Morrison têm personagens sempre mergulhados em questões de identidade, a maior parte se passa no período da escravidão ou da luta pelos direitos civis nos anos 1950, e reconstrói uma história que até hoje afeta a vida de uma minoria massacrada. E aí, a questão da cor da pele é sempre fundamental.

A própria autora nunca teve problema em admitir: ;Escrevo para pessoas negras. E não tenho que pedir desculpas;. A literatura de Toni Morrison se inscreve em um universo que vai muito além de rixas raciais. É também sobre os sentimentos femininos e sobre a própria literatura que uma das vozes mais poéticas da escrita contemporânea americana se debruça. ;Cientificamente, não existe essa coisa de raça;, explica o personagem de seu romance mais recente, God help the child, ainda inédito no Brasil. ;(...) e racismo sem raça é uma escolha. Ensinado, é claro, por aqueles que precisam dele, mas, ainda assim, é uma escolha. Os que o praticam não seriam nada sem ele (...);.

Questão racial

A Toni Morrison se juntam autores como Alice Walker, cujo romance A cor púrpura emocionou gerações e virou filme nas mãos de Steven Spielberg; e Paul Beatty, que esteve recentemente no Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e levou anos para se tornar conhecido.
Na Flip, Paul Beatty disse que não quer ser o representante de uma comunidade
;Beatty está ;na praça; há tempos; é da geração que fez surgir David Foster Wallace e Jonathan Franzen e sei que muitos se perguntam por que ele demorou de ;aparecer;; o fato de ser negro, talvez;, especula Josélia Aguiar, curadora da Flip que fez questão de, este ano, equilibrar a lista de convidados com autores negros e mulheres.

Ganhador do Man Booker Prize de 2016 com O vendido, história de um menino negro que instaura a segregação em um bairro fictício de Los Angeles, Beatty é reativo quando o identificam como um representante da comunidade literária negra. ;Ele não se coloca nessa posição. É um cara muito afinado ideologicamente, óbvio, com a tradição democrata e liberal americana, no entanto, ele não quer ser um porta-voz de movimento negro, não quer falar em nome de uma coletividade, ele quer se colocar como um autor;, explica Flávio Moura, editor da Todavia, que publicou o livro de Beatty no Brasil.

No mundo da televisão, é uma negra nascida no interior do Mississipi há 63 anos, quando brancos podiam expulsar negros de ônibus, quem comanda os números recordes de faturamento. Oprah Winfrey é a apresentadora mais conhecida, respeitada e admirada da telinha americana. Está entre as mulheres mais ricas dos EUA e sempre aproveitou o alcance de sua voz para falar sobre direitos civis, racismo, discriminação e violência racial.

A apresentadora também abriu espaço para jovens autores negros. Um deles é Colson Whitehead, que viu seu The underground railroad ; Os caminhos para a liberdade vender mais de um milhão de cópias depois de entrar na lista do clube de Oprah. Autor de mais de seis livros, Whitehead venceu o Prêmio Pulitzer com este romance que narra a trajetória de Cora, uma escrava que foge da lavoura e se depara com a construção de uma estrada de ferro cujos túneis podem ser fundamentais para a sobrevivência.
O livro de Colson Whithead vendeu mais de um milhão de exemplaes

Nas telas

Inúmeros atores negros foram fundamentais para o cinema estadunidense. Mesmo assim, premiações como o Oscar sempre relegaram a eles um espaço menor. Não à toa, em 2016, diversos artistas denunciaram a situação e criaram o movimento #OscarSoWhite, um boicote ao prêmio (por dois anos consecutivos não houve negros entre os indicados para atuação e direção). O astro Will Smith foi um dos que aderiram ao protesto e não compareceram à cerimônia. Ele é um dos mais bem-sucedidos atores americanos e estrelou uma série de filmes que alcançaram números gigantescos em bilheterias.

O livro de Colson Whitehead impulsionado pelo clube de leitura de Oprah Winfrey será base para uma série da Amazon pelas mãos do diretor Barry Jenkins, que ganhou o Oscar de Melhor Filme este ano com Moonlight, o primeiro longa de temática LGBT estrelado por atores negros. O filme levou a estatueta de melhor roteiro adaptado. Jenkins é outro nome de destaque na cena cinematográfica. Recentemente, ele dirigiu um episódio de Cara gente branca, série sobre racismo nas escolas e faculdades americanas, para a Netflix.

Em 2014, outro diretor negro, Steve McQueen, levou o Oscar de melhor filme por Doze anos de escravidão, que conquistou ainda o prêmio de melhor atriz e melhor roteiro adaptado. Na lista de atores negros que ganharam destaque na última década e ajudaram a abrir um caminho para repensar a representação das minorias em setores estratégicos da cultura entram Denzel Washington, Jamie Foxx e Viola Davis, todos premiados com Oscar e Globos de Outro.
A atriz Viola Davis venceu todos os prêmios de atuação americanos

Viola, aliás, é a protagonista da série How to get away with murder, transmitida pelo canal ABC desde 2014. Quando recebeu o Emmy em 2015, ela falou sobre a diferença de oportunidades entre mulheres brancas e negras. ;A única coisa que separa as mulheres negras de qualquer outra pessoa é oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por papéis que simplesmente não existem;, disse.
O som da alma

Sem a cultura negra, a música americana como a conhecemos não existiria. Os afrodescentes foram responsáveis por criar ritmos como o blues, o jazz, o soul e o funk. A essência do som produzido nos EUA tem, inegavelmente, DNA negro.

Por lá, a música sempre foi também uma forma de resistir e denunciar os horrores e absurdos do racismo, mesmo que isso, em muitos casos, tivesse um peso negativo para a carreira. ;Falar de racismo gera muito desconforto. Incomoda mais do que presenciar alguma cena de racismo. Artistas que têm a coragem de falar sobre o assunto tendem a enfrentar mais problemas que os outros;, aponta o músico e editor do portal de cultura negra Obuli, Jun Alcantara.

O posicionamento desses artistas, no entanto, é fundamental, acredita Jun. ;Quanto mais eles abordam essa questão, mais o seu público reflete sobre o assunto. Quando falam de forma mais aprofundada, se mostrando estudiosos em relação às consequências do racismo, o público também passa a enxergar esse problema com mais profundidade.;
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A cantora Beyoncé é uma das artistas que, atualmente, usam a música para falar de questões raciais. Lemonade (disco mais recente da cantora), porém, fala claramente sobre racismo e mostra o posicionamento da cantora. Todos os clipes do álbum são estrelados por negros.

O rapper Kendrick Lamar é outro símbolo da luta pela igualdade racial. Desde o início da carreira, o músico americano denuncia atrocidades cometidas contra negros e a violência policial. Em 2016, quando ganhou o Grammy de melhor disco de rap com To pimp a butterfly, Lamar fez uma apresentação contundente no palco da premiação. Ao lado de negros acorrentados, ele cantou, entre outros versos, que ;cadeias são as novas senzalas;.
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Soul

Há menos tempo no mainstream do que colegas como Beyoncé e Lamar, o cantor Leon Bridges chamou a atenção já com o álbum de estreia, Coming home (2015).

River é uma das mais fortes canções de Bridges. Apesar de abordar questões pessoais, a canção trata, na interpretação de alguns críticos, justamente de racismo. ;Em minha escuridão, eu lembro/ As palavras de minha mãe voltam à tona/ Renda-se ao Bom Senhor/ E ele limpará a sua alma;, canta Bridges.
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Para Jun Alcantara, mesmo que as questões raciais não apareçam diretamente, eles estão sempre presentes no trabalho de artistas negros. ;A vida do negro é permeada por essas questões o tempo todo, desde o nascimento. Muitas vezes, a mensagem de conteúdo racial não é explícita, mas só de partir do ponto de vista de alguém que sofre racismo, a questão racial já está inserida, independentemente da temática da letra;, explica.

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