Nahima Maciel
postado em 06/11/2017 09:00
Logo no início do novo prefácio para Verdade tropical, reeditado pela Companhia das Letras para comemorar os 20 anos do lançamento do livro, Caetano Veloso avisa aos novos leitores que podem pular aquela parte e ir direto para o último parágrafo. De lá, se não quiserem ler o livro inteiro, podem ainda pular para o capítulo Narciso em férias. Daí, se gostarem, que voltem ao começo. Os hiperlinks sugeridos por Caetano são uma ironia, pois exatamente nos trechos que sugere pular estão alguns dos melhores momentos desta reedição de Verdade tropical.
Caetano dá início ao prefácio em forma de resposta às críticas mais contundentes sofridas pelo livro. Começa com algumas bobagens ; ou imprecisões ;, como o fato de Alegria, alegria não ser a única música popular brasileira a mencionar a Coca Cola e Rita Lee não ser de Pompeia, como afirma lá pelo meio do livro ao falar, de forma geral, dos Mutantes. Um caso de hipercorreção aqui, um ;lembro de; erroneamente transitivo indireto ali, uma Nova Iorque escrita assim com I, e não na forma York, são picuinhas e interessam menos que o resto desse novo prefácio.
Ali no miolo é que estão as considerações mais relevantes, aquelas em que Caetano se debruça sobre o Brasil e o mundo de hoje, já tão distante daquele de 1997, quando Verdade tropical foi publicado. As leituras de Mangabeira Unger e Eduardo Viveiros de Castro, as reformas trabalhista e da Previdência, a questão ambiental, a democracia, o liberalismo e a desigualdade social aparecem como questões urgentes para o compositor. ;Nos últimos tempos, minha inclinação à esquerda viu-se obrigada a explicitar-se, dada a intensidade com que as forças conservadoras se levantaram no Brasil. Para muita gente isso foi um combustível para a polarização e a volta a classificações de desclassificações fáceis. Para mim, o desprezo pela aristocracia tola dos esquerdistas não justifica uma adesão aos planos sinistros da direita;, escreve.
Caetano analisa também algumas das traduções da obra ; gosta mais da italiana e da espanhola ; e conta como entrou em depressão após o nascimento do filho Tom, pouco depois de publicar Verdade tropical. ;Um bebê adorado surgir quando eu já tinha 55 anos me punha diante da morte (não da ideia da morte: eu não pensava muito nisso naquele estado, exceto quando, pouco mais de um mês depois que aquilo começou, o pensamento de suicídio ; coisa inimaginável para mim até então ; se impôs com uma clareza fria que não me assustava nem me consolava, mesmo minimamente, mas da morte mesma): parecia que eu estava amarrado a minha vida pequena e que a grandeza requerida para se ter um filho não me seria mais possível alcançar;, confidencia Caetano, em texto sincero e comovente.
Verdade tropical é um livro fundamental para a história da música popular brasileira das décadas de 1960 e 1970. Articulador da Tropicália ao lado de Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa, Caetano é também um escritor consistente e nada superficial. Não se deixa engolir pela própria obra, escreve de maneira quase proustiana (as divagações entre parênteses são labirintos agradáveis) e sempre muito erudita, sem com isso dificultar o acesso do leitor. É um misto de literatura, ensaio e quase autobiografia que faz pesquisadores, como Ricardo Cravo Albin, darem ao livro uma dimensão para além da história. ;Esse livro, ele não tem apenas impacto na história da MPB, não tem apenas impacto na história de Caetano Veloso. Ele tem impacto na história e na vida do próprio país, especialmente florescente;, acredita o historiador. ;Caetano deduz e conduz as ideias para campos pouco imaginados pelos escritores comuns. Ele certamente é uma exceção.;
Para o jornalista e pesquisador Tárik de Souza, Verdade tropical teve impacto enorme na área pensante da MPB, já que retrata por dentro como foi concebido o movimento que mudou os rumos estéticos da música da época. ;A abertura conceitual do movimento influenciou boa parte das transformações posteriores da MPB, como a absorção do pop/rock, brega e a naturalização da vanguarda. E, pelo livro, é possível acompanhar isso (concordando ou discordando, e apesar do título impositivo) através da narrativa depurada de Caetano;, diz. Além disso, o livro é rico em aspectos que alimentam os estudiosos da música. ;Foi escrito por um raro artista, criador e crítico ao mesmo tempo. Ele tem uma visão nítida de seu trabalho e do contexto histórico/político/social em que está inserido. Não tem o perfil do artista cavalo da própria obra, regado pela inspiração, mas de ativista consciente de seu papel e da repercussão de sua atividade;, garante Souza.