Ângela Faria
postado em 13/01/2018 07:20
Ruy Castro hipnotiza o leitor ; assim como foi hipnotizado ;pelo ouvido; em suas conversas telefônicas com João Gilberto. Parece fácil escrever tão ;simples;. Ledo engano. O ofÃcio exige pesquisas exaustivas, 400 perguntas planejadas para apenas um entrevistado, guerra sem trégua aos clichês. Trêfego e peralta: 50 textos deliciosamente incorretos não deixa de ser oportuna provocação ao jornalismo do século 21, à s voltas com a fugacidade do mundo on-line. Organizado pela escritora Heloisa Seixas, o livro traz artigos e entrevistas, publicados desde 1977 e comemora meio século de labuta do repórter.
Nenhuma das 345 páginas tem ranço de passado. E olha que Ruy, de 69 anos, fala de pecados como o prazer de degustar um cigarro. Bom de prosa, instiga Millôr Fernandes a filosofar e a falar do próprio machismo. Desarma o espertÃssimo Ibrahim Sued. João Gilberto, Xuxa, prÃncipe Charles e a Chita do Tarzan ainda conseguem nos surpreender, tantos anos depois da publicação daqueles artigos.
Mas o que dá gosto, mesmo, é descobrir ;anônimos;, gente como o figuraça José do PatrocÃnio de Oliveira, a encarnação humana do Zé Carioca. Infelizmente, ficou faltando a entrevista ;ping-pong; com Tim Maia, lamenta o autor das impecáveis biografias de Nelson Rodrigues, Carmen Miranda e Garrincha.
Cinquenta anos de profissão, meio século de redação... O ofÃcio de repórter ainda te fascina? Ou você se sente, hoje, escritor, biógrafo e ;ex-jornalista;?
Nunca deixei de ser jornalista. Foi a primeira e única coisa que pensei ser na vida, e bota tempo nisso ; mais de 60 anos (risos). O que aconteceu foi que, a partir de 1988, já estava fora das redações, trabalhando em casa. Hoje isso é comum, mas, em 1988, não era. Aà comecei a trabalhar com livros e a vida mudou. Mas nunca abandonei a imprensa. Em todo esse perÃodo, mesmo soltando um livro atrás do outro, não se passou um dia em que eu não estivesse ligado a algum veÃculo como colaborador fixo ; ponha aà a Folha, o Estado de S. Paulo, o Jornal do Brasil e, por um breve perÃodo, O Globo e o Extra, além de inúmeras revistas. Há 10 anos sou colunista quatro vezes por semana da página 2 da Folha.
Nunca deixei de ser jornalista. Foi a primeira e única coisa que pensei ser na vida, e bota tempo nisso ; mais de 60 anos (risos). O que aconteceu foi que, a partir de 1988, já estava fora das redações, trabalhando em casa. Hoje isso é comum, mas, em 1988, não era. Aà comecei a trabalhar com livros e a vida mudou. Mas nunca abandonei a imprensa. Em todo esse perÃodo, mesmo soltando um livro atrás do outro, não se passou um dia em que eu não estivesse ligado a algum veÃculo como colaborador fixo ; ponha aà a Folha, o Estado de S. Paulo, o Jornal do Brasil e, por um breve perÃodo, O Globo e o Extra, além de inúmeras revistas. Há 10 anos sou colunista quatro vezes por semana da página 2 da Folha.
Selecionar os 50 textos do livro foi uma ;escolha de Sofia;? A missão coube à escritora Heloisa Seixas, mas queria saber como você se sentiu ao se deparar com o ;resumo da obra;. Doeu deixar algo de fora?
Trêfego e peralta não é um ;resumo da obra;... É uma coletânea de textos provocativos e inéditos ; só isso já define bem o escopo da escolha. As ;escolhas de Sofia;, portanto, foram dentro desses limites. Mas, sim, doeu deixar de fora a entrevista que fiz com Tim Maia para a Playboy ; a editora nos desaconselhou porque a famÃlia do Tim é muito chata, cria caso por qualquer coisa ; e, no texto, que é de matar de rir, ele arrebentava com o Roberto Carlos...
É uma arte republicar artigos de tantos anos atrás sem soar como ;coisa do passado;. Qual é o segredo dessa atemporalidade?
Você tem razão, há uma certa ciência em fazer uma seleção como esta ; ponto para a Heloisa. Na verdade, este é um livro sobre jornalismo ; sobre as diversas maneiras de fazer jornalismo. Contém reportagem, entrevista, artigo, crônica, tudo. Nas entrevistas (com Ibrahim Sued, Millôr Fernandes e Elsimar Coutinho), espero que o leitor perceba o trabalho do entrevistador, de como ele se preparou para enfrentar o entrevistado, como o cercou para não deixar nenhuma pergunta sem resposta e como fez isto no nÃvel do entrevistado. Em outros textos, como o sobre a inundação da biblioteca da USP ou sobre o lançamento do LP da Xuxa, a ideia era mostrar que, por mais insignificante o assunto, pode-se tratá-lo de modo a ser informativo, satisfazer o leitor do jornal daquele dia e ainda continuar interessante em livro mais de 30 anos depois.
O primeiro artigo fala de clichês, o ;pecado de cada dia; do jornalismo. Bolsas despencando, mercado nervoso... Quais são os clichêscontemporâneos que mais te incomodam?
Ah, muitos hoje me incomodam... O ;entrar em estúdio; para gravar um disco é indestrutÃvel. Outros são ;ponto fora da curva;, ;zona de conforto;. Essa é a vantagem de usar o clichê ; ele sai direto, não precisa passar pelo cérebro.
A guerra contra os clichês está perdida? A internet veio complicar ainda mais o quadro?
Em duas palavras: sim.
Você brilha em assuntos, digamos, ;fora da caixinha; ; olha o clichê aÃ... O artigo sobre o cocô é um deles. Como escrever sobre algo que o público rejeita e, ao mesmo tempo, atrair esse leitor?
Antes de escrever, costumo pensar sobre o assunto. Geralmente, só começo a pô-lo no papel ; digo, na tela ; depois que ele foi bem trabalhado na cabeça. Claro que, no calor de uma redação ; e vários textos de Trêfego e peralta foram produzidos nesse calor ;, nem sempre se tem muito tempo. É preciso, então, aprender a pensar rápido. Mas, como não se pode controlar tudo, muitas vezes uma frase engraçada ou reveladora sai de um jato, espontaneamente, sem você esperar. É uma das magias de escrever.
Em Desconstruindo heróis, você fala de Lillian Hellman, Jack Kerouac, Gay Talese, Ãdolos de muita gente. Se fosse para escrever o Desconstruindo hoje, em quem você miraria?
Sinceramente, acompanho pouco o movimento atual. Ficam espantados quando pergunto sobre o que Fulano ou Beltrano faz ; como se eu tivesse obrigação de saber. Fico confuso com essa quantidade de Alexandres na praça ; deve haver hoje uns 10 Alexandres famosos, não? E os Cauês e Luans? E os Luês e Cauans? Estou brincando (risos). É que, há quase um ano, tenho passado o dia mergulhado no Rio dos anos de 1920 (para o novo livro) e sem muito tempo para me dedicar à vida real. E vou continuar nos anos 1920 pelos próximos dois anos!
Depois de meio século de jornalismo, há alguém que você ainda sonha entrevistar? Qual foi a entrevista que você mais gostaria de fazer ; e não fez?
Ah, sim, se eu estivesse na ativa, gostaria de entrevistar os grandes caras-de-pau do paÃs ; Temer e Lula, principalmente. Mas será que ainda há um veÃculo como a antiga Playboy, capaz de assimilar uma entrevista de sete ou oito horas de fita gravada, 60 laudas de transcrição e 20 páginas na revista impressa? Esta era a minha média na Playboy e na Status nos anos 1980 e 1990. Cada entrevista me tomava um mês de preparação antes de ir encarar o entrevistado. Quem pagaria por isso hoje? E eu próprio não tenho mais gás para essa maratona. Dos que já pegaram o boné, lamento nunca ter entrevistado Otto Lara Resende ; me dava com ele, mas nunca pintou. E acho uma vergonha ter sido tão Ãntimo de certas pessoas ;Paulo Francis, Ivan Lessa, Decio Pignatari, Ronaldo Bôscoli ; e nunca ter havido um microfone em nossas conversas. Talvez a amizade atrapalhasse.
Discute-se muito o futuro do jornal impresso. Há quem garanta que ele vai acabar. É mesmo só questão de tempo?
Não me incomodarei se os jornais impressos ficarem menores, mais analÃticos e com informação enxuta, mas exclusiva e de alto nÃvel. Mas, para isso, os on-lines terão de melhorar muito. São pessimamente escritos e escrever à s pressas não é desculpa para escrever mal. Quem me parece correr grande risco também é a televisão ; a geração dos meus netos não passa nem perto.
TRÊFEGO E PERALTA
50 textos deliciosamente incorretos. De Ruy Castro/Org: Heloisa Seixas. Companhia das Letras/345 páginas R$ 54,90 e R$ 37,90 (e-book)