Diversão e Arte

Para filósofo Eduardo Jardim, grandes movimentos de arte estão mais raros

Ele acaba de lançar livro sobre três épocas culturais e seus diálogos com o contexto social e político

Nahima Maciel
postado em 31/01/2018 07:00
Eduardo Jardim reflete sobre cultura e Brasil em 'Tudo em volta está deserto'

Seria possível eleger três momentos capazes de representar a cultura brasileira e seu impacto sobre uma geração em um recorte de 30 anos? O que sairia de uma análise dessas? O filósofo Eduardo Jardim se propôs a fazer o exercício e o resultado foi o curto e preciso Tudo em volta está deserto, um conjunto de três ensaios sobre manifestações culturais que mexeram com o autor. Para Jardim, Quarup, o romance de Antonio Callado, Gal a todo vapor, o show catártico de Gal Costa, e a poesia de Ana Cristina Cesar foram emblemáticos para certos momentos da história do Brasil. Guardam um lugar nas décadas de 1960, 1970 e 1980 que só a distância temporal permite compreender. ;Quando escrevi o livro, queria compreender o que tinha ocorrido. Pontuar de alguma forma o que tinha vivido. Acho que as coisas só são compreensíveis quando contadas. Não pensei em tirar nenhuma lição. Não acho que se pode usar para entender o que acontece hoje. Cada momento tem que ser contado como foi e não se repete. Mas precisa ser contado para ser compreendido. Compreender é muito importante para a vida fazer sentido;, diz Jardim.

Eleger manifestações capazes de causar o mesmo impacto neste início do século 21 é tarefa que necessita de tempo, afastamento e, sobretudo, um desligamento dos fatos contemporâneos para que o pensamento possa realmente emergir. Mesmo assim, Jardim olha para os dias de hoje com certo recuo. ;Desde os anos 1970, não se observaram mais aqueles grandes movimentos de ideias e de arte em geral, a bossa nova, a arquitetura brasileira, os retratos do Brasil, o tropicalismo, a poesia concreta e neoconcreta, e tanta coisa mais, que ainda exploravam o caminho aberto pelo modernismo nos anos 1920. Houve uma ruptura que tem a ver com alterações do país, com a globalização, o fim da bi-polaridade no plano mundial, os novos meios de comunicação e a perda das certezas que os de minha geração ainda tinham;, acredita. ;Sobre essa ruptura ainda há muito que falar ; é o pano de fundo da nossa época.;

No entanto, ele elege alguns movimentos recentes que merecem destaque, como o rock dos anos 1990 e o funk. ;Apareceram uma música e uma poesia popular nasci das das periferias, como o funk ; que têm vida. E que vida! Própria! É possível que muitas coisas novas surjam daí, da criatividade das camadas da periferia;, aponta. Na literatura contemporânea, Jardim destaca autores como João Gilberto Noll, Milton Hatoum e Bernardo Carvalho, mas reconhece que é pequeno o alcance da produção desses autores: ;Houve obras individuais, no caso da literatura, sem propriamente uma unidade. Os romances de Noll, de Hatoum, de Bernardo Carvalho são desiguais e muito diferentes. E houve também o divórcio entre a produção erudita, de um lado, e popular e popularesca, de outro. A literatura de ficção de qualidade tem um público limitado. Há uma invasão de Paulo Coelho, de subliteratura;.

Eduardo Jardim leu Quarup pela primeira vez no final da década de 1960. O livro publicado em 1967 narra a trajetória do padre Nando, um idealista que sonha em reproduzir no Xingu a experiência dos Jesuítas e acaba por se engajar na militância política. O romance cobre 10 anos da vida política brasileira, exatamente o período que vai da queda de Getúlio Vargas, em 1954, ao início da ditadura militar, em 1964. ;O que é legal no Quarup, e que não é legal em outros livros do Callado, é o fato de que essa proposta militante é vista de uma forma muito problematizada;, explica Jardim. ;O cara está tentando buscar um retrato do Brasil, chega lá no retrato do Brasil, um formigueiro com formigas assassinas e tudo dá errado. O barato do livro é o fato de não ser uma resposta simples.;

Jardim não gosta de respostas simples e, por isso, aponta Ana Cristina Cesar como um ícone de uma geração. Diferentemente de Callado, a obra da poeta não faz concessões às conjunturas, e o filósofo tem especial apreço por esse detalhe. Ana Cristina produziu nos últimos anos da ditadura e não chegou a ver a abertura política. O suicídio, em outubro de 1983, pode ter sido responsável por um certo isolamento da obra da autora nos anos seguintes. Mas Ana Cristina virou o ícone de uma geração e acabou homenageada na Flip de 2016. ;Acho que ela é a possibilidade de, mesmo num momento tão difícil, duro, criar um projeto de exploração poética tão forte;, afirma o autor.

Em Tudo em volta está deserto, ele chama a atenção para um episódio narrado pela poeta em carta a uma amiga. Ela comenta a morte de Juscelino Kubitschek e conta que muitas pessoas estão apreensivas, inclusive estocando víveres. Para ela, no entanto, a manchete do dia deveria ser poesia. É uma amostra de como Ana Cristina mergulhou em um projeto literário nada circunstancial. ;Essa coisa dela de estar, menos atendendo às demandas das circunstâncias e se deslocando para um outro plano que é o da poesia simplesmente me interessou muito. Se engajar era muito pouco para ela. O que é imediato, circunstancial, isso não interessava. Ela tinha uma ambição de uma viagem poética muito diferente daquela moçada;, garante Jardim.

Gal Costa foi um capítulo à parte da década de 1970. Jardim lembra que saiu do show impressionado. Era 1971, a ditadura corria nas mãos do general Emílio Garrastazu Médici, que prometia um retorno gradual à democracia. Quando Gal cantou Como 2 e 2, de Caetano Veloso, e chegou ao verso ;tudo em volta está deserto tudo certo;, Jardim projetou o Brasil de então. ;O show da Gal, para mim, é uma resposta, uma reação a uma situação de repressão política e de pouco espaço para expressão que é próprio desses primeiros anos da década de 1970. Tinha uma experiência de juntar um pessoal que vivia num mundo muito esvaziado de experiência e teve ali uma experiência catártica;, conta.

Hoje, o filósofo não consegue eleger três momentos na música e na literatura que sejam capazes de projetar um momento da história do Brasil. É preciso que o tempo passe para que se consiga um descolamento dos fatos e uma suspensão do pensamento. ;Sinto também que da parte dos estudiosos começa a haver um movimento de revisão da nossa história cultural. Eu mesmo tentei escrever sobre o modernismo, Mário de Andrade e este livro atual. Este é um importante momento de parar para pensar.Temos que rever a ruptura com o passado e auscultar o que aparecerá;, analisa.


ENTREVISTA/ Eduardo Jardim
A militância, o engajamento e o compromisso poético que estão nos três momentos escolhidos para o livro, você encontra hoje na cultura brasileira do século 21?
Eu acho que tenho tendência a ver cada momento como cada momento. Não dá pra gente entender o que está acontecendo hoje com aqueles critérios. O que acho no caso da Ana, especificamente, é que esse movimento que a Ana faz de se deslocar de uma perspectiva mais presa às circunstâncias ou respondendo ao imediato para uma dimensão que é mais do poético, da imaginação, acho que isso vai ser sempre importante na medida em aque, se a gente não tiver imaginação, a gente não vai formular nada de diferente.

Você enxerga uma preocupação semelhante à da Ana Cristina na poesia feita no século 21?
O que a Ana me inspira? O fato de ela ter possibilitado, se soltado de qualquer militância e ter dado algo para a imaginação. O que sinto que acontece hoje em dia é que as conversas são muito presas no imediato, nos apelos mais circunstanciais. Às vezes, penso que isso empobrece a simulação das questões.

Existe alguma literaturahoje que te provoque o que Callado e Ana Cristina provocaram?
Não tenho lido nada que tenha me entusiasmado. Li as coisas do Bernardo Carvalho e me interessava, mas não li as últimas. Eu gostava do (João Gilberto) Noll, porque acho que ele também falava das coisas do nosso tempo de uma maneira que nunca estava satisfeito com as respostas que estão aí. Ele era um cara imaginoso, criativo, não se contentava com as respostas dadas. Ficcionalmente, ele inventava uma outra coisa. A Ana diz que a poesia é lidar com o impossível e o impossível é o real. Isso é incrível.

E na produção cultural de hoje, o que é transformador? Tem algo transformador sendo feito na literatura, na poesia e na música?
Eu acho que deve ter muita coisa. Há alguns anos, fui a Salvador a convite da Flup, feira literária da periferia. A gente foi a Salvador, em Alagados, e a gente foi recebido por um grupo chamado Bagunçaço, um cara que tinha montado uma super orquestra de percussão com aqueles meninos em uma situação de absoluta pobreza, vulnerabilidade. Quando fui lá falar comecei a ficar arrepiado, chorar. A música muda a vida daqueles meninos. E isso são coisas que a gente nem vê. A gente não vê essas experiências que estão acontecendo nesses lugares com arte, com teatro, com poesia recitada.

Por que não vemos?
A gente é muito classe média, né? Vejo que tem coisas legais, sim. Por exemplo, eu vi recentemente um menino aqui no Rio, o Ramon Nunes Mello, um poeta, que fez uma coletânea de poemas sobre o HIV, uma coletânea bastante grande, meio que registrando a experiência do HIV desde inicial, que era uma sentença de morte, até gerações mais jovens. Escrevi uma orelha para o livro. Então, tem iniciativas. Estou pensando em coisas que tenho visto e que não passam, necessariamente, pelos caminhos convencionais, mas acho que tem vida.
Tudo em volta está deserto
De Eduardo Jardim. Bazar do Tempo, 128 páginas. R$ 42

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