Ana Clara Brant/Estado de Minas
postado em 03/02/2018 07:32 / atualizado em 08/10/2020 14:38
Laranja mecânica, clássico do diretor Stanley Kubrick, não levou o Oscar de melhor filme em 1972, mas nem por isso deixa de ser obra-prima. A Seleção Brasileira comandada por Telê Santana não ganhou a Copa de 1982, mas é lembrada como um dos times mais brilhantes de todos os tempos. É assim também com aquele que é considerado um dos maiores espetáculos da Terra: o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Nem sempre os louros vão para os campeões.
É isso que mostra o livro do jornalista e escritor Marcelo de Mello, Por que perdeu — Dez desfiles derrotados que fizeram história (Record). “Os campeões têm seu lugar já registrado. Por que não falar dos carnavais que não venceram, mas são inesquecíveis? Há casos em que as pessoas se recordam até mais de determinadas escolas, tamanho seu impacto, do que das vencedoras”, revela.O grande exemplo é o antológico desfile “Ratos e urubus — Larguem minha fantasia”, da Beija-Flor, em 1989.
O enredo da escola de Nilópolis, comandada por Joãosinho Trinta, usava o lixo como metáfora em sua impactante crítica social. A uma semana da folia, o desfile foi censurado pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, pois um carro alegórico trazia o Cristo Redentor. É marcante até hoje a imagem que se viu na avenida: o Cristo Mendigo coberto por um pano preto e a faixa onde se lia: “Mesmo proibido olhai por nós!”.”Aquele desfile causou um impacto imenso, com características que fugiam aos critérios de julgamento.
Foi algo único. As fantasias sujas, rasgadas, mas bonitas ao mesmo tempo, como se estivessem desconstruindo uma estética tradicional. O próprio Joãosinho queria mostrar que materiais baratos podem reluzir mais do que ouro. Fora que proibir a imagem de Cristo acabou criando uma empatia muito grande pela escola”, analisa.
Três jurados deram nota 9 à azul-e-branco, que, no desempate, perdeu o primeiro lugar para a Imperatriz Leopoldinense (com o enredo “Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós”). “Não só eu, mas acredito que muitos que acompanham o carnaval consideram “Ratos e urubus” o maior desfile de todos os tempos”, crava Marcelo. A ideia do livro surgiu depois de o jornalista publicar a série “Perdeu o título, ganhou a história” no jornal O Globo, onde trabalha como editor-assistente, e cobriu vários desfiles. Jurado do Prêmio Estandarte de Ouro, que elege os melhores do carnaval, Marcelo diz que o título da publicação não implica em achar respostas para derrotas.
Trata-se de um questionamento comum por parte de quem perde, pondera.”Seja o time que não levou o campeonato ou a escola que não venceu o carnaval, o torcedor fica perplexo e se questionando: Por que perdeu? O livro não vai, necessariamente, solucionar essas questões, até porque há jurados que já morreram, temos outros personagens que não estão mais aqui. Essa pergunta é uma forma de expressar a surpresa, pois todo mundo sempre tem a expectativa da vitória”, explica.No fim de cada capítulo — dedicado a um desfile —, o autor propõe o tema — “E se fosse campeã” —, escrevendo sobre critérios adotados para a vitória, mudanças no carnaval, o embate entre o desfile técnico e o que emociona.
Para Marcelo, cada desfile tem suas circunstâncias e peculiaridades. O abismo entre a sensação do espectador e o total das notas do júri não se dá necessariamente por má-fé, observa.”É complicado falar em injustiça. O carnaval carioca é decidido em décimos, nos detalhes mesmo. São diferenças de pontos de vista. Tanto que a lista que apresentei é o meu ponto de vista, subjetivo, a partir da pesquisa em jornais, livros, vídeos”, acredita.Segundo ele, outro desfile que mudou o carnaval do Rio foi “O sonho da criação e a criação do sonho – A arte da ciência no tempo do impossível”, criado por Paulo Barros, então estreante no Grupo Especial.
À frente da Unidos da Tijuca, ele encontrou dificuldades na escola, mas surpreendeu integrantes, jurados e, principalmente, o público. “Foi um marco. O carro do DNA, com as alegorias vivas, talvez seja a imagem mais impactante do carnaval neste século. Paulo trouxe uma renovação, um frescor. Ninguém dava nada pela Tijuca, mas ela acabou ficando em segundo lugar”, frisa.
Nem sempre as derrotas são amargas. Elas podem representar renovação. Foi assim com “Domingo”, em 1977, que entrou para a história como um dos momentos mais românticos do carnaval carioca. “O desfile moldou a identidade da União da Ilha, definida pelo lema ‘bom, bonito e barato’, informa o jornalista. Aliás, foi a primeira vez que Marcelo de Mello assistiu “ao maior show da Terra” in loco. “A Beija-Flor ganhou e desde então passei a ser fã da escola. Sou da geração que acompanhou o auge dela. A Ilha ficou em terceiro e seu carnaval emocionante virou lenda”, comenta.
Outro exemplo é “O mundo é uma bola”, outra criação icônica de Joãosinho Trinta para a Beija-Flor, a vice-campeã de 1986. Quem levou foi a Mangueira, com a homenagem a Dorival Caymmi. “Foi a primeira vez que se viu a escola com chão. Até então, a Beija-Flor sempre foi considerada técnica, suntuosa, com luxo, mas sem garra. Naquele dia, caiu um temporal e os componentes mostraram uma vibração e uma energia impressionantes, mesmo com a Sapucaí alagada. Muita gente foi obrigada a rever paradigmas. Então, teve o seu lado positivo”, conclui.
OS 10 DESFILES
União da Ilha, com “Domingo” (1977). Ficou em 3º lugar.
Portela, com “Incrível, fantástico, extraordinário” (1979). Ficou em 3º lugar.
Império Serrano, com “Mãe baiana mãe” (1983).
Ficou em 3º lugar.
Mocidade, com “Como era verde o meu Xingu” (1983). Ficou em 6º lugar.
Beija-Flor, com “O mundo é uma bola” (1986). Ficou em 2º lugar.
Beija-Flor, com “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” (1989). Ficou em 2º lugar.
Portela, com “Gosto que me enrosco” (1995). Ficou em 2º lugar.
Mocidade, com “Villa-Lobos e a apoteose brasileira” (1999). Ficou em 4º lugar.
Beija-Flor, com “A saga de Agotime, Maria mineira naê” (2001). Ficou em 2º lugar.
Unidos da Tijuca, com “O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível” (2004). Ficou em 2º lugar.
POR QUE PERDEU?
De Marcelo de Mello. Editora Record . 210 páginas. R$ 44,90