Diversão e Arte

Novo romance de Marcelo Mirisola faz revisão da própria trajetória

Livro do escritor paulistano retoma o narrador obsessivo e despedaçado

Nahima Maciel
postado em 10/03/2018 07:20
Marcelo Mirisola
Em Como se me fumasse, há um pouco de Joana a contragosto, Fátima fez os pés para mostrar na choperia e Hosana na sarjeta. ;Questão de estratégia;, avisa Marcelo Mirisola. ;Estilo. Charme.; As citações no novo romance, ele explica, funcionam como peças de uma mesma engrenagem complexa. ;Às vezes, me sinto um relojoeiro;, admite.

Oitavo romance do relojoeiro, Como se me fumasse tem um narrador que já é clássico no repertório de Mirisola. O sujeito que se descreve como esquizofrênico, psicopata, obsessivo acabou de perder a mãe, e nesse vácuo reencontra uma paixão não superada, em relação à qual alimenta a expectativa de uma volta que nunca acontece. Ou não do jeito esperado pelo narrador.

A perda e a morte são temas desse novo romance, que carrega a eterna questão da literatura de Mirisola: burlar ou não a fronteira entre ficção e realidade, entre memória e criação. É uma questão irrelevante, ele defende, e pode ser mesmo, dado que a literatura e o próprio livro têm mais relevância. E o livro é bom.

Embalado pela perda da própria mãe, que o fez ;estar sozinho no mundo, mais do que as outras vezes. Dessa vez, pra valer;, o autor escreve sobre morte, amor e ódio a partir da perspectiva de um narrador em primeira pessoa. Por meio deste, o leitor vai conhecer Ruína, que é também Joana, Fátima e todos os amores de Mirisola. Ruína bate à porta do narrador no mesmo dia em que ele enterra a mãe. E perturba. Basta um beijo ; que, aliás, ela jura nem ter acontecido ; para o sujeito mergulhar numa tempestade interior da qual mal consegue sair e para a qual arrasta o leitor. Sim, Ruína vai voltar com o ex-marido depois de uma separação relâmpago causada por pilhas de um controle remoto. E o narrador vai ficar revoltado.

Lá pelas tantas, depois de constatar uma existência pontuada por angústia, tédio e tristeza, ele repassa a própria trajetória. É Mirisola falando, ou o narrador, pouco importa. Ele lembra o lançamento de O herói devolvido, no mesmo ano em que Paulo Coelho também publicava algo. O jovem que trazia ;lufada de oxigênio; para a literatura brasileira, ;o responsável pelo ressurgimento do conto;, avisa: ;escrevo deliberadamente na primeira pessoa e assino meu nome embaixo, sem pudores nem disfarces. Eu quero é rosetar! Não fiz essa merda toda por descuido, era minha intenção embaralhar autor e narrador;. Está feito.

E as citações não se limitam aos próprios romances, Mirisola também incluiu ali alguns desafetos públicos, como o Boca de Siri, de quem era amigo e que, segundo o narrador, encara o suicídio de um melhor amigo como uma licença para escrever uma obra-prima. Para a crítica, ele joga: ;Tô aqui, depois de dezessete anos, e você? Tá de boas;. São digressões inseridas no meio da história, licenças não pedidas que dão um ritmo alucinante à escrita escrachada de Mirisola. E por fim, tem o ;feicebuque;, no qual o autor é pra lá de ativo e que, no livro, é metrônomo do afeto, do amor e do ódio por Ruína.

Entrevista / Marcelo Mirisola


Existe fronteira entre a ficção, a realidade e sua própria realidade?
Essa divisão ou a fronteira é irrelevante. Porque eu e minha ;biografia; somos irrelevantes. Porque a realidade é irrelevante. Porque a ficção é irrelevante. E porque a única coisa que conta é a soma e o resultado de todas essas irrelevâncias. O que conta é o livro. O resto é jogo de cena, vaidade, sofisma, pistas falsas, tudo mentira.

Como é sua relação com as redes sociais? Elas te aproximam do leitor? E do quê elas te distanciam?
Se não fosse o feicebuque eu publicaria um livro por mês. Além de ser um instrumento de comunicação direta com os leitores é um freio muito saudável à minha exacerbada criatividade. Sinceramente? Acho ótimo desperdiçar talento, jogar pérolas aos porcos. Mas eu posso me dar esse luxo. Tenho aquilo que os comediantes do século passado chamavam de ;obra;. No meu caso, ajuda. Evidentemente, isso não serve de régua nem de compasso para ninguém. Vejo muito talento sendo desperdiçado nas redes sociais. O aplauso e a aprovação imediata dizimam novos talentos a olhos vistos, uma tragédia.

Você escreve ;quero dizer que se não fosse o prefácio da Maria Rita não conseguiria ser editado, não era nada fácil ser publicado antes da internet;: agora é fácil?
No século passado, quando comecei, não existia aplauso fácil. Nossos demônios não dançavam na boquinha da garrafa, estavam presos dentro de nós mesmos. E se o cara não tivesse estofo, não aguentava. Ou enlouquecia, ou se matava. Ou arrumava um emprego, casava, tinha filhos e vivia feliz para sempre.

Em determinado momento, o personagem lista algumas situações pelas quais passou: desligado, amaldiçoado, preterido, expelido. Você se sente assim no meio literário?
Coitadinho do ;meio literário;. Meia dúzia de gatos pingados destoados da realidade do país onde pensam que vivem. Só vejo manchas, espectros. Não sinto nem pena, porque não há vida, entende?

O personagem também fala de imortalidade. Escritores são imortais? A literatura é uma busca da imortalidade?
A literatura, hoje, é algo que não fede e nem cheira, perdeu a relevância. Ninguém mais dá bola. Eu ouço mortos (que são os autores que leio), e falo com mortos, que são os meus leitores, gente, como eu, que não existe. Não consigo dissociar literatura da vida, então, se não existe literatura, não existe vida. E vida é condição sine qua para se morrer e alcançar a imortalidade, logo não temos cacife sequer para morrer, imortalidade já era, tá morta e enterrada.

Esquizofrênico, psicopata, obsessivo são expressões que o personagem usa pra se descrever. São grandes temas da literatura? São características necessárias do escritor?
Acho que qualquer uma dessas características serve muito bem ao candidato a escritor. Eu, por exemplo, sendo apenas um idiota, escrevi 20 livros.

Você acha que sua literatura choca? A literatura ainda incomoda? De que forma?
Olha, vou lhe dizer um treco: se diante do cenário de miséria absoluta, tédio e entorpecimento que vivemos, se diante da erosão da personalidade individual e da estigmatização do ;eu; em detrimento de um coletivo histérico e fascista, se diante da inapetência para esboçar um latido ou qualquer reação análoga, se diante da calamidade existencial da qual somos o retrato mais fidedigno, se diante da merda que estamos atolados até o pescoço minha literatura servir pra incomodar uma alma que seja, olha, lhe digo, do fundo do coração: se acontecer algo parecido com isso, serei um idiota realizado, feliz da vida.

Como se me fumasse
De Marcelo Mirisola. Editora 34, 172 páginas. R$ 41

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