Severino Francisco
postado em 17/03/2018 07:20
Com letras minúsculas, as falas das personagens do escritor português Valter Ugo Mãe, na ficção O apocalipse dos trabalhadores, se atropelam e se sobrepõem em águas emendadas. Mas, aos poucos, eles se delineiam, ganham forma, carne, sopro e peso. Maria da Graça e Quitéria, as protagonistas, são duas empregadas domésticas, ;mulheres a dias;, como se diz em Portugal. Mulheres casadas, sempre com a sexualidade aflorada, a debater sobre o tamanho das pilas e a se envolver com amantes, numa relação permeada de prazeres, culpa, conflitos de consciência e pungência.
Para os brasileiros, Portugal se tornou a imagem de uma nova pasárgada, terra de paz, segurança e felicidade. No entanto, Valter Hugo Mãe nos revela uma outra face. Portugal é cenário de uma história dramática da globalização, em que os trabalhadores se veem reduzidos quase que a novas formas de escravidão, em meio à glorificação do mercado. É o apocalipse dos trabalhadores.
São personagens desgarrados, estrangeiros no próprio país ou fora dele, obrigados a serem duros para sobreviver na selva selvagem da globalização. Maria da Graça é casada com Augusto, um pescador errante, mas se entrega ao senhor Ferreira, o patrão da casa em que trabalha de mulher a dias.
Enquanto isso, Quitéria mantém relações sexuais com Andriy, ucraniano angustiado, que não fala uma palavra em língua portuguesa e sobrevive do trabalho rude em obras da construção civil. Andriy deixou a mãe e o pai na Ucrânia, atormentados pela misteriosa história de um assassinato supostamente cometido pelo patriarca da família. Promete enviar dinheiro, mas só consegue o mínimo para manter-se vivo.
A escassez, a instabilidade e a precariedade do trabalho degradam, ofendem e humilham os personagens: "toda a vida trabalhei, desde os meus doze anos que lavo roupa e limpo casas em toda parte e não sei fazer mais nada. Eu não sei fazer amor;, confessa Maria da Graça. Para se protegerem, os personagens se empenham em ser máquinas; máquinas de produzir, máquinas de prazer, máquinas vencedoras, máquinas felizes: "Voltou a pegar na cadeira, seguiu caminho sem um sorriso e sem voltar a cabeça. Incrivelmente eficiente no papel de quem não amava quitéria e se portaria como uma máquina de trabalho a caminho da felicidade e mais nada;.
Mas, na verdade, não existe espaço para nenhum panfletarismo. A narrativa se desdobra em duas histórias paralelas de amor: a de Maria da Graça com Ferreira e a de Quitéria com Andriy. Augusto afirma sobre a mulher: "maria da graça não tinha muito cérebro e não sentia nada quando lhe punha alguma coisa vagina adentro. (;) achava que maria da graça era mulher sem desejos de tipo algum. Andava pela vida a pensar no trabalho e trabalhava e não acontecia mais nada, porque não era mulher para lhe acontecer mais nada".
Nelson Rodrigues, o nosso profeta do óbvio, já havia antecipado que estávamos ingressando em uma época em que os homens se maquinizavam e as máquinas se humanizavam cada vez mais. A narrativa de Valter Ugo Mãe é duríssima, sem meias-tintas ou dissimulações. No entanto, o seu olhar é de ternura e compaixão extremas pelos desvalidos. ;Decidia mais uma vez depositar-se nos braços do maldito, o seu amado futuro assassino. Não sorria, começava a chorar por acreditar que o amor era sempre igual à morte.;
Maria das Graças se recusa a ser um monte de pedras suposto pelo marido e opta pelo destino de morrer de amor. O amor é a única força capaz de humanizar esses personagens condenados à sina implacável de máquinas. Valter Ugo Mãe arranca uma poesia apocalíptica dos tempos pós-humanos nos quais estamos mergulhados. É um privilégio termos na condição de contemporâneo um escritor tão vigoroso, imaginoso e bem-humorado. Ele renova a fé no poder humanizador da literatura.
SERVIÇO
O apocalipse dos trabalhadores
De Valter Ugo Mãe/Ed.Biblioteca Azul