Ricardo Daehn
postado em 20/03/2018 07:20
Para além da exibição do excelente longa alemão que ganhou o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro deste ano, Em pedaços, o circuito da cidade traz espaços alternativos para a exibição de fitas germânicas. E melhor: em caráter gratuito. No Goethe-Zentrum (SEPS 707/907), nesta terça-feira (20/3), há o começo da mostra A Alemanha nas telas. Duas horas antes do filme, marcado para as 19h, quem for ao local poderá comprar comida nos food trucks recheados de culinária alemã. Bratwurst (salsicha), apfelsrtudel (torta de maçã) e weissbier estão entre atrativos complementados pela oferta de comidas turcas, com destaque para falafel e kebabs.
A exibição do longa mudo Gente no domingo (1929), sob acompanhamento musical do pianista Serge Frasunkiewicz, trata de cirandas amorosas com personagens simples que se encontram no lago Wannsee. Ambientada na República de Weimar (como ficou designada a Alemanha, após a Primeira Guerra), a fita foi uma das cinco escolhidas pelo curador da mostra Pablo Gonçalo, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Entre as curiosidades, Gente de domingo traz a assinatura de Robert Siodmak e Edgar George Ulmer, conhecidos nas investidas em Hollywood, com filmes como Pirata sangrento (1952) e O gato preto (1934) que reuniu Bela Lugosi e Boris Karloff.
Projetado ao lado de nomes como Wim Wenders e R.W. Fassbinder, o diretor Volker Schlondorff (que ganhou o Oscar com o filme O tambor) terá o clássico O jovem Torless (1966) mostrado na quarta-feira (21), às 19h. Adaptado de romance de Robert Musil e premiado pela crítica, no Festival de Cannes, o longa aprofunda o exame de bullying, numa era de atos extremados. Na outra semana, a mostra A Alemanha nas telas terá Phoenix, de Christian Petzold, como atração. No filme, uma sobrevivente de campo de concentração vê o marido às voltas com golpes para ter acesso à herança. Criados, respectivamente, por Tom Tykwer e Fatih Akin, Três: Triângulo amoroso (2010) e Do outro lado (2006) são outros filmes da mostra. Ambos tratam de conturbadas relações amorosas.
Na Embaixada da Alemanha (SES Qd. 807), o dia 29 será marcado pela exibição de Hanami ; Cerejeiras em flor, às 19h, com entrada franca. Fita da diretora Doris D;rrie, consagrada em comédias, trata-se de um denso drama. Na trama, Trudi está ciente da iminente morte do adoentado marido e, em clima de despedida, opta por realizar um antigo sonho.
Três perguntas/ Pablo Gonçalo, curador
Na atualidade, pesa o componente feminino, quando se fala em arte. Como o cinema alemão --- nos títulos selecionados --- se ocupa da presença e retrato feminino?
As mulheres possuem um forte protagonismo em boa parte dos filmes da Mostra Alemanha nas Telas. Em Gente no domingo (1930), temos uma boa representação de uma liberdade feminina durante o auge da chamada República de Weimar, que era como o regime liberal e parlamentarista era chamado antes da ascensão de Hitler e do Nazismo. São mulheres que votam, trabalham, possuem um enorme prazer no flerte, na brincadeira e, sobretudo esbanjam uma incrível leveza com a vida. Num filme como Phoenix (2014), por outro lado, a personagem Nelly (incrivelmente interpretada por Nina Hoss) precisa se reconstruir depois do trauma da guerra, da sobrevivência ao Holocausto e do embrutecimento do homem que amou. A força da personagem feminina está na forma como um inicial silenciamento explode num marcante canto final. No filme Três: um triângulo amoroso, de Tom Twyker, temos um enfoque também feminino do famoso tema do menage a trois. Dessa vez são dois homens que se permitem a homoafetividade para amar a mesma mulher. Nesses filmes as personagens mulheres não reforçam um esterótipo do feminino no cinema, mas são personagens fortes, completas, dignas e ousadas e fazem dos seus gestos uma força de atração ímpar, para além do binômio masculino - feminino.
Aspectos da globalização estão contemplados nas tramas de alguns filmes em especial?
Sim, sobretudo nos filmes de Fatih Akin, que enfocam os horizontes e desafios de uma Alemanha multicultural, mais contemporânea. Como um diretor com origem turca, Akin desafia uma forma de se pensar o nacionalismo alemão restrito a uma herança étnica, racial ou mesmo histórica. Seus filmes focam em impasses, em fronteiras tensas, mas também numa esperança que apontam num convívio possível. Os turcos foram uma das principais imigrações nos anos setenta e buscavam uma reconstrução do país, mas aos poucos optam por ficar lá e reivindicar uma forma de participar no cotidiano dessa sociedade. Akin enfatiza as dificuldades e a beleza dessa conquista.
Qual foi o critério para a escolha dos títulos e qual o grande diferencial alemão, quando se fala da cinematografia mundial?
Como toda curadoria, o critério é buscar filmes relevantes, belo, leves e envolventes, que nos permitam tanto revisitar um passado como apresentar outros futuros. A história do cinema alemão é muito marcada pelo trauma da segunda guerra mundial, a estética expressionista, o holocausto e o anti-semitismo, ou por autores caros ao cinema novo alemão, como Wim Wenders, R.W, Fassbinder e mesmo Werner Herzog. Minha busca foi enfatizar outras constelações, menos conhecidas da cinefilia de Brasília e que descobri com muito entusiasmo nos dois anos que morei em Berlim. Um filme como Gente no Domingo, por exemplo, ilumina um cotidiano frugal e um tanto bucólico, de uma comunidade judia e berlinense num singelo final de semana. Tem roteiro de Billly Wilder e foi dirigido tanto por Robert Siodmark como por Edgar Ulmer, diretores que consolidaram suas carreiras nos Estados Unidos, em Hollywood, diretores judeus que como tantos emigraram e nunca mais moraram na Alemanha. Mas o filme é uma pérola e não possui nenhuma atmosfera teneborsa. Pelo contrário, é uma conquista da cidade, da autonomia e uma celebração da alegria de viver. Faremos, inclusive, um acompanhamento musical ao vivo para homenagear a performance e o ambiente musical desses anos. Uma obra como Jovem T;rless, de Volker Schl;ndorff, é outro filme essencial na cinematografia alemã e que raramente é visto e conhecido do público brasileiro. Além de ser uma adaptação do importante escritor Robert Musil, o filme tem a sensibilidade de transmitir, na sua adaptação, parte do tom melancólico dessa geração marcada pela herança do passado do holocausto. Os três filmes contemporâneos realçam os dilemas da Alemanha multicultural assim como as conquistas de um vivência mais livre de um páis que conviveu décadas com muros de vários tipos.