Diversão e Arte

O que pesa no Norte, pela Lei da Gravidade (Belchior já sabia) cai no Sul

Josely Teixeira Carlos*
postado em 30/04/2018 15:56
Por que um dos artistas brasileiros que mais tocou no tema da nordestinidade e do migrante nas grandes metrópoles ausentou-se da megalópole onde morou por quase 40 anos e da terra natal e foi morar numa pequena cidade do Sul do Brasil?

Santa Cruz do Sul não é cidade grande, mas é, sem nenhuma dúvida, uma grande cidade. Essa foi a convicção que tive ao conhecer o município, após a morte de Belchior, por ocasião de tributo ao artista, organizado pelo grupo de pessoas que o acolheu na cidade, a 150km da capital do Rio Grande do Sul. Ao sair de Porto Alegre em direção a Santa Cruz, em minha mala havia uma indagação: Teria havido algum motivo especial que levou o autor dos versos ;saia do meu caminho. Eu prefiro andar sozinho; (de Comentário a respeito de John) a escolher Santa Cruz como local de autoexílio?

O homem, apreciador de vinhos, foi morar na cidade conhecida pelo evento da cerveja, sede da maior Oktoberfest do Rio Grande do Sul. O homem, que adorava charutos, escolheu passar os últimos anos na cidade considerada a ;capital mundial do fumo;. O homem, que tinha o coração selvagem e pressa de viver, foi morar na cidade que possui um dos autódromos Internacionais do Brasil. Todas essas características seguramente não têm relação alguma com o fato de Belchior ter se distanciado de tudo e de todos para se refugiar em Santa Cruz. E por isso as interrogações permanecem cada vez mais fortes.

Apesar da surpresa causada em muita gente, desde que o Fantástico encontrou em 2009 Belchior no Uruguai, depois de anunciar o afastamento de terras brasileiras, a relação do artista com o Sul, Porto Alegre, o Pampa, o Uruguai, a Argentina é bem mais antiga. Na década de 1980, Belchior fez shows em Jaguarão, cidade fronteiriça com o Uruguai. Anos depois, gravou com a dupla uruguaia Larbanois & Carrerro canções traduzidas para o espanhol. Já em 1974, Belchior falava no Uruguai com amigos, como lemos em carta ao compositor Ricardo Bezerra, em que conta que estava se programando para uma turnê latino-americana (Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Santiago). Essa ligação está expressa especialmente nas letras das canções, como se vê no trecho ;Já pensei até em passar a fronteira;, de Monólogo das grandezas do Brasil, e ;Por força deste destino, o tango argentino me vai bem melhor que o blues;, de A palo seco.

No sentido de encontrar explicações para a escolha do lugar de exílio de Belchior, pode-se argumentar que o Rio Grande do Sul é o único estado do Brasil em que se pode ser brasileiro e ao mesmo tempo ser latino, justamente a simultânea posição identitária que Belchior estabeleceu em sua obra, ao instituir o alter ego do ;rapaz latino-americano vindo do interior brasileiro;.

Junto a isso, ao nascer em Sobral, no Ceará, no Nordeste, Belchior estava naturalmente ;sentado na esquina do mapa;, como ele mesmo definiu na letra de Ploft, com melodia de Jorge Mello. Ao ;cair; no Sul, como o título onomatopaico da música sugere, Belchior transferiu-se de esquina, em busca talvez das ;venas abiertas; da América Latina, de Eduardo Galeano, autor uruguaio que ele lera tantos anos antes e que releu durante o exílio. Como ontologicamente um homem de fronteira, Belchior, desde o início, já era um gauche, um gaucho, um gaúcho.

Josely Teixeira Carlos, professora de linguística, pesquisadora da USP, com teses de mestrado e doutorado sobre Belchior

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