Ricardo Daehn
postado em 02/05/2018 07:30
Numa breve recapitulação, não há como se desvincular o cinema brasileiro recente do teor de reivindicação ou exame de realidade social, quando a gente lembra de títulos vindos das mais diferentes regiões e que apresentam problemáticas genuinamente nacionais: Doméstica, por exemplo, investiu no dia a dia das muitas vezes exploradas diaristas; Vazante ressaltou nuances da escravidão; Martírio trouxe luz para desmandos nas terras indígenas, enquanto Sem pena radiografou o sistema carcerário do país. Longe da ideia de esgotamento nas abordagens, dois títulos atuais chamam a atenção no circuito exibidor: A cidade do futuro (de Cláudio Marques e Marília Hughes) e Ex-pajé (de Luiz Bolognesi).
;Há homofobia no sertão, nas grandes cidades, em qualquer lugar. Tivemos muito cuidado com os nossos atores;, explica o codiretor de A cidade do futuro. Cláudio Marques (Confira entrevista ao lado), que, há cinco anos, recebeu diversos prêmios pelo filme anterior (Depois da chuva), incorporou impasses sexuais saídos da realidade dos desconhecidos atores Gilmar Araújo e Igor Santos. Pessoas do povo contribuíram, em muito, para a realização do filme. ;Fomos para Serra do Ramalho (Bahia) diversas vezes. Moramos na casa das pessoas, experimentamos a mesma comida, diariamente... Conhecemos como poucos aquela realidade, num intercâmbio de ideias e experiências que marcam a todos. Lançar o filme, é fechar um ciclo, criando um momento rico e emotivo para todos;, avalia o cineasta.
Flagrantes no dia a dia experimentados por uma equipe de cinema e acontecimentos reais (encenados para a câmera) compuseram a vivência impressa pelo diretor Luiz Bolognesi nas filmagens, por um mês, de Ex-pajé, documentário sobre indígenas moradores de região de Rondônia próxima à fronteira com Mato Grosso. No centro do registro documental está o antigo pajé Perpera (do povo Paiter Suruí), que, nas palavras do diretor, ;não perde o contato com os espíritos, mesmo depois de longa temporada como zelador de uma igreja de evangelizadores;.
Para arrebanhar o público ;pequeno e seletivo; que acompanha documentários, o diretor conta que criou uma estrutura narrativa que parece ficção. ;Acho que tanto o lado social, quanto as abordagens políticas, não perderam o interesse para o público. De direita ou esquerda, as pessoas, por exemplo, conferiram O mecanismo, ainda que com o tema árduo. Não dá para fazer Ex-pajé como um documentário corriqueiro, batendo na mesma tecla do lugar-comum: se as pessoas farejam clichê, não comparecem às salas;, enfatiza.
Desde os 20 anos de idade, progressivamente destituído de importância na tribo, aos 70 anos, Perpera não se deixa manobrar. ;Não se trata de ato de rebeldia o fato de, nas cenas, ele dar as costas para os cultos. Perpera não tem nem conexão com temas relacionados à Bíblia;, confirma Luiz Bolognesi. Depoimentos muito fortes de lideranças indígena foram parte do legado da recente exibição de Ex-pajé no Acampamento Terra Livre (em Brasília). ;Várias lideranças indígenas reiteraram a constante tentativa de evangelização dos povos, que se mostram, por vezes, seduzidos ou, noutro plano, bem combativos às ideias da Igreja;, conclui.