Ricardo Daehn
postado em 13/05/2018 07:32
Nas descobertas, em três meses de pesquisas para o filme Teu mundo não cabe nos meus olhos (em cartaz na cidade), o ator Edson Celulari ; protagonizando o filme sobre um pizzaiolo cego ;, deu guinada nas próprias perspectivas. Entre vivências, acompanhava o cotidiano de deficientes visuais ; primeiro, observando, de olhos abertos; depois, deixando olhos absolutamente fechados. ;Fui a Brasília, onde tem um pizzaiolo cego, o Júnior. Sabia de feitos incríveis alcançados por cegos, mas eu não conhecia nenhum caso na gastronomia. Existia aí, em Brasília. Ficamos lá, fazendo pizza: eu aprendendo a fazer pizza e observando como ele trabalhava, achando o ponto da pizza;, conta o ator, que considera o personagem do filme um marco na carreira.
Ao Correio, o ator ; que, em 1980, despontou nos cinemas, aos 22 anos, com Asa Branca: Um sonho brasileiro ; conta do susto, com o diagnóstico do câncer superado no ano passado, fala das atuais empreitadas como produtor artístico, como forma de viabilizar projetos (;hoje em dia, não dá para ficar esperando alguém trazer a grande ideia do seu sonho;) e das apreensões políticas.
[SAIBAMAIS]
;Não perco a esperança: acho que tudo mudará, um dia, que a cultura, a arte ; diretamente ligadas à educação ; vão transformar o país. Acho que, não à toa, as coisas mudam. Revoluções não são feitas do nada;, observa. Depois de cursos de cinema no exterior, os ideais também são amplos: Do Atlântico ao Pacífico é o longa que deverá lançar Edson na direção, em 2019. ;Trata de um homem que, com a filha a distância, tenta resgatar a relação e deixar um legado para ela. Quer passar valores, numa viagem;, adianta.
Como é a sua relação com Brasília, com a sua mulher sendo arquiteta da cidade?
Sou casado com a atriz Karin Roepke, formada em arquitetura. Ela é da Asa Sul ; eu não sei agora, direito, de uma quadra, uma superquadra (risos). Não é com tanta frequência que vou a Brasília. Eu gosto da cidade, curto a arquitetura, gosto da história da cidade, apesar de faltar calçadas. Eu sempre acho que a relação com o urbano tem que ter calçada ; socializar nas calçadas. Brasília foi pensada de outra forma, e é admirável, é incrível também: gosto de ela ser toda setorizada.
Em Brasília, você já esteve com espetáculos variados. Que memória tem dos palcos?
Fiz Calígula, Don Juan, além de várias peças do Moli;re. Com todos os espetáculos que fiz, passei por Brasília. Sempre me recebeu muito bem. É uma tristeza essa longa temporada sem o Teatro Nacional, um teatro tão lindo e com público que sempre prestigiou. A gente sempre teve Brasília como uma ótima praça para se levar bons espetáculos para uma sala grande como a Villa-Lobos.
O que o deixa intranquilo no Brasil dos seus filhos Enzo e Sophia?
É um momento intranquilo, né? Há uma crise geral de comunicação, de ideias, de revoluções a serem feitas, grupos... Falta unidade, em todos os sentidos. Estava até falando, outro dia, sobre isso: esses guetos, com lutas setorizadas, são todas maravilhosas: seja do negro, seja da mulher, seja do respeito à criança e à adolescência. O que se vê, num caldeirão louco, é tudo muito bem-vindo. O que me deixa muito intranquilo, pai de dois jovens, é a diferença social de nosso país, imensa. Temos tantas questões de uma prática, já histórica, de incomensuráveis corrupções. Haveria seriedade dos nossos políticos, no sentido básico para o qual é eleito, pelo povo, para trabalhar pelo país? Onde é que estão essas pessoas? Eu acho até que elas existem. Será que desistem, quando chegam no cargo?
Você fez novelas com seriedade de temas sociais, como Que rei sou eu? e Brasileiros e brasileiras, que apregoavam revolução...
Acho que revolução não é do nada. Então, o que cabe aos brasileiros é ganhar unidade, ganhar voz, através de grupos, de setores, segmentos. Uma coisa que é comum a todos é a escolha, né? A escolha que nos cabe, através do nosso voto. Nós estamos num ano eleitoral. Vamos observar, pelo amor de Deus! Acho que ali começa ; não sei se uma revolução ; mas uma possível mudança, com uma seleção um pouco mais cuidadosa.
Por que a vontade de produzir, no novo filme Teu mundo não cabe nos meus olhos?
No teatro, fui produtor de todos os meus espetáculos. No audiovisual, vejo que a maioria dos grandes atores americanos, hoje em dia, são produtores ou coprodutores. Eles entram obviamente para viabilizar um projeto ou outro, aquela ideia. Hoje em dia, você ficar esperando alguém trazer a grande ideia do seu sonho?! Não. O seu sonho pode estar ao seu lado. Tem que ir lá, fazer da ideia projeto.
Como você percebe o desenvolvimento de projetos para streaming?
Vejo com bons olhos, toda essa mutação. É sempre bem-vinda. A gente, no Brasil, está se estabelecendo. Hoje já temos as produções nacionais da Netflix e da Amazon e provavelmente daqui a pouco da Disney também. No Brasil há um mercado muito forte aqui. Eles vão querer esse conteúdo, com toda certeza. Tanto que há visitas acontecendo e as pequenas produtoras têm se oferecido. Acho que é um boom, é um momento efervescente saudável para a criação de novos profissionais, de novas escritas. Vejo de uma forma saudável.
O filme Teu mundo não cabe nos meus olhos marca uma virada?
Foi um enorme desafio, como ator. É um retorno para o cinema, coisa que há muito tempo eu não fazia. Agora eu até fiz um curso com a minha mulher: fui para a Espanha, nós fizemos um curso de direção de cinema. Aí, depois, eu dirigi um curta em Los Angeles e agora quero fazer um outro curta agora durante a novela. Se eu consigo no final de semana... Ano que vem, tenho a oportunidade de dirigir o meu primeiro longa.
Como será esse novo projeto do longa Do Atlântico ao Pacífico?
São só dois atores, o pai e a filha. Uma filha adolescente criada à distância. O protagonista tenta resgatar a filha para deixar um legado para ela, com valores, e eles fazem uma viagem. Quero fazer com quem eu já trabalhei e que conheço, na produtora Accorde Filmes. Eles me propuseram, e a gente está vendo uma história que é muito interessante. Ainda não bati o martelo, mas gostaria de interpretar o pai, e dirigir. Então, não é uma pretensão... O personagem é maravilhoso e se eu conseguir ter um bom diretor de fotografia e um bom assistente de direção. Na história, a filha adolescente terá a relação recuperada com o pai. O pai se separa da mãe e a mãe se casa de novo, e essa filha é criada pelo padrasto. Quando o pai percebe, reage. Eles saem do Atlântico, passam pelo Uruguai, passam pela Argentina e chegam do Chile ao Pacífico. E essa viagem é a tentativa de um resgate.
Quais são teus filmes mais significativos?
No Asa Branca ; Um sonho brasileiro (1980), meu primeiro filme e que me rendeu prêmio em Brasília, tem uma cena na goleira de futebol, com o estádio vazio ; que traz o sonho de um personagem que ia no Maracanã, à noite, jogar bola com a lua ; a lua descia, virava uma bola e ele jogava futebol com o Garrincha que estava vivo, ainda, na época... O Inocência (1983) foi meu segundo filme, e com o Walter Lima Jr! Era tirado da literatura do Visconde de Taunay. Era o primeiro filme da Fernanda Torres e, enfim, teve a sua importância, a produção do Luiz Carlos Barreto, e Ópera do malandro (1985), de Ruy Guerra, que foi para Cannes, um filme que entrou para a história. O Ruy Guerra é muito interessante como cineasta.
Falando de cegueira e da fuga do politicamente correto... Com o novo filme você fala até palavrão?
É, a televisão tem lá um conceito sobre o português mais correto, mais coloquial, sobre excluir palavrões. Enfim, é uma postura assumida, e eu faço muita televisão. Talvez o público não esteja acostumado, mas, no cinema, estive em A ópera do malandro. Acho isso muito saudável de que venha essa realidade do coloquial, da atitude mais humana, brasileira, localizada. Todos nós falamos palavrão. Mas o que eu gosto do Teu mundo não cabe nos meus olhos, em si, e do personagem, para além de apresentar um cego sem ser coitadinho, é que acho que ele discute uma coisa muito contemporânea: o respeito ao outro, o exercício da tolerância, de aceitar e superar. Temos que aceitar o outro, até por ele ser diferente. Um cego feliz, pode ser feliz sem ser igual a todos. Ele é feliz, do jeito dele. Acho que o filme trata disso: fala da cegueira que os outros têm.
Como pesquisou para o filme?
Convivi com cegos, num universo muito maior do que a gente imagina. Eles se defendem de uma forma tão bonita e simples, e a gente fala: ;caramba como sou tonto. Como eu nunca percebi que isso seria possível;. Um senhora cega, por exemplo, me perguntou se eu sabia como ela escolhia as roupas, e eu ; ;nem imagino, talvez pela textura.? E ela: ;não!” Daí, pegou um aparelhinho e foi passando em cada roupa, e aí tinha gravado num chip da roupa: blusa amarela, com detalhes em preto; na calça, outra informação. Eles usam recursos incríveis, se comunicam com a rapidez maior do que a nossa. Foi muito bacana ter conhecido isso. E, para mim, era um desafio de fazer um cego de olhos abertos. Não quis fazer com óculos, nem de olho fechado.
Na televisão, a dramaturgia anda meio exaurida, esgotada?
Há um fenômeno curioso que vivemos. Nos Estados Unidos, por exemplo, hoje existe uma criatividade nas produções das séries muito maior do que em Hollywood. Hoje, você consegue realizar coisas muito mais ousadas e inéditas na linguagem. O cinema comercial se sente até meio engessado por ser grande, mais lento do que o streaming. O streaming é uma prateleira, uma janela que multiplica quantidade de conteúdo. E ele vai colocando naquela prateleira e oferecendo, oferecendo, e o consumo é mundial. Esse fenômeno obviamente mexe com o todo e com teledramaturgia. Com qualidade, chegamos ao produto que brasileiro consome, mais até do que a maioria. A telenovela é respeitada, no mundo inteiro, porque incluiu humor, incluiu qualidade de produção, investigou temas sociais, e numa escala até menos melodramática.
E qual o futuro dela?
A nossa novela vai ser oferecida também no streaming, não ficará apenas na tevê aberta. Existe, sim, o público que gosta do folhetim diário, daquelas histórias com aquele perfil, nós temos um público imenso. A gente não pode dizer que o Brasil consome hoje mais séries do que telenovela. Existe um Brasil, mais antigo e mais lento, no interior, significativo, numericamente. Agora, se existe uma crise ou não, a gente vai ver daqui a pouco quando se instalar, quando isso se estabilizar nessas novas linguagens. Continuo adorando fazer telenovelas, como adorando ver a experiência de série. Escuto que o teatro vai acabar há 40 anos. Acho que o Shakespeare já escutava isso (risos). Agora, escuto que telenovela e cinema vão acabar. Não acho que seja assim: cinema traz a experiência única de dividir uma sala escura com outras pessoas, algo mágica. Essa magia eu acho que não vai se perder.
Onde está a vaidade do galã Edson Celulari, aos 60 anos?
Eu acho que a vaidade minha sempre foi a do ator. Não me classifiquei como galã. Quem rotula isso é o público. Nunca me prendi por isso. Ao ator, é possível tudo, então, enquanto eu tiver discernimento, eu tiver memória, quero exercer o meu ofício. Para o novo filme, eu consegui ganhar 17 quilos! Era fundamental para esse personagem. Eu não me via cego magrinho, um pizzaiolo magrinho, sabe... Cegos têm uma certa dificuldade para atividade física, dependem às vezes de uma outra pessoa. Fiz um pizzaiolo que herdou uma pizzaria do pai, no Bixiga. Se acomodou, até a possibilidade da mudança na vida dele, por meio de cirurgia.
Foi difícil perder peso?
Um mês depois do filme, peguei uma gripe, na Patagônia, e vim a descobrir da minha doença, do câncer. Foi depois do filme, estava acima do peso, mas começando a emagrecer. E com gânglios, dois gânglios aqui no pescoço. A gente descobriu que era um câncer: linfoma não-Hodgkin, e tratei. Então eu nem podia fazer dieta durante o tratamento da quimioterapia e da radioterapia, mas eu naturalmente fui emagrecendo a partir do momento que eu comecei fazer atividade física. Agora, estou equilibrado no peso.
A questão da saúde, com o Brasil inteiro torcendo por ti ; isso trouxe mudança de prisma?
Houve um susto. Quando eu recebi a notícia ; e eu perdi meu pai com câncer ;, bateu assim uma coisa que eu nunca tinha vivido, e que era uma finitude, a morte. E aí você fala: ;Caramba... e agora? Dá um tempinho aí, deixa eu tentar organizar as coisas pelo menos. Você pensa na sua família, na sua mulher, nos seus filhos, em você. E, enfrentei. Enfrentei. Quando nós chegamos ao hospital Sírio-Libanês e eu tive o diagnóstico real do que era, já veio, junto com o diagnóstico, um protocolo. Tudo com uma chance enorme de ter bons resultados.
Então, o que passou naqueles dois dias antes trouxe realmente um grande susto. Teve um período, em que tinha que ficar isolado, e fiquei isolado. Foi no final de 2016. Aproveitei, e eu falei: ;Deixa eu dar uma repassada em tudo;. E aí você acaba, enfim, fazendo escolhas: aprofundando, vendo o que é importante. A correria, os valores. Fui vendo como eu era um cara que tinha tanta coisa, e só tinha coisas a agradecer. Tinha tantos amigos, tanto trabalho, tantas possibilidades e tantas coisas bacanas, e quantas coisas eu ainda tinha por fazer e que ainda sonho em fazer. Então, foi um momento de reavaliação, de colocar uma fila de importância nas coisas.
A religião te ajudou?
Não. Sou uma pessoa que tem fé, mas eu não tenho religião. Assimilei muito bem todas as energias boas que todo mundo me deu, nas mais diversas religiões e crenças, e agradeço a todos que torceram, que rezaram e que mentalizaram. Teve coisas incríveis assim: ;Hoje, vai ter uma corrente de 400 homens que passarão a noite orando... O seu nome estará lá na oração;. Recebi muita manifestação bonita, mesmo. Nesse mesmo grau de importância, a Glória Perez me chamou para fazer a novela A força do querer. Independentemente da saúde, ela disse ;a gente quer você, de qualquer jeito;. Aquilo, para mim, foi de um estímulo incrível, eu agradeço muito à Glória por ter insistido, e eu fui muito feliz ali, aquilo me ajudou muito.