O mês de maio tem trazido uma média de três documentários brasileiros lançados, a cada semana. Em Brasília, em menos de 20 dias, por exemplo, foi possível acompanhar a chegada, na telona, de Híbridos, os espíritos do Brasil; Soldados do Araguaia; Todos os Paulos do mundo; Ex-pajé; Rogério Duarte, o tropikaoslista; Construindo pontes e ainda de O renascimento do parto 2 (do brasiliense Eduardo Chauvet), sem contar com o já polêmico desembarque, nas salas de cinema, de O processo, da diretora brasiliense Maria Augusta Ramos, fita que chega quinta-feira às telas, tratando do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Entre afunilamento de abordagens, pesquisas extensas de temas e múltiplas formas de viabilização de filmes, diversidade segue sendo palavra de ordem, quando se trata de difundir recorte da realidade no cinema.
;Tivemos à mão, os maiores materiais do cinema brasileiro;, observa Rodrigo de Oliveira, codiretor de Todos os Paulos do mundo, que cerca a vida pessoal e artística do ator Paulo José. Violência, exposição política e obras-primas de etapas do Cinema Novo compõem o enorme painel proposto na fita que não apela para entrevista com o intérprete de clássicos como Edu, coração de ouro. Por restrições de saúde, pelo mal de Parkinson, Paulo José traz a voz limitada. ;Pensamos: ;Por que não acreditar que os filmes dele falam por si, já que, na bagagem, ele carrega participações no cinema que atravessaram, regularmente, todas as décadas, desde os anos de 1960?;. A verdade do Paulo José também está na ficção (mentirosa) com que se desenvolveu nas artes. Ali, ele falava sobre ele mesmo, por meio de personagens. O trabalho era ouvir os filmes, e se aproximar das falas dele;, observa Rodrigo, que codirigiu o filme com Gustavo Ribeiro.
Pela dificuldade de se enxergar como ícone, Paulo José, no processo do longa, deixou muito aparentes as próprias inseguranças e fragilidades, numa postura de extrema humildade. ;A cada encontro, depois de muita choradeira, pela comoção de ver toda uma vida, tínhamos aulas de cinema com Paulo José, que, além de objeto do longa, foi coautor da fita. Ele sempre elencava detalhes a serem melhorados. Paulo José foi um diretor importante de tevê, e ainda um grande pensador que veio de uma geração em que apenas exercer um ofício não bastava. Era necessário ir além;, explica Rodrigo de Oliveira.
Uma pesquisa de material produzido entre 1959 e 2016 foi vertida em texto para a narração do filme feita com parceiros de cena de Paulo José, entre os quais Selton Mello e Milton Gonçalves. A produtora Vânia Catani (de filmes como O palhaço), com 20 anos de amizade com Paulo José, foi quem viabilizou o documentário sobre um dos astros de Macunaíma. ;Paulo sempre abria espaço para que todos brilhassem em cena. Na condição de estudioso do cinema brasileiro, nas pesquisas, há sempre a inevitabilidade de esbarrar com a importância dele, como figura, não apenas central, mas apaixonante. Paulo não é particularmente bonito e sempre tendeu ao naturalismo. Ele tinha um corpo que podia representar qualquer corpo. Paulo desaparece, mas está nos personagens, o tempo inteiro. Autores com tino autobiográfico recorriam a ele, por ser um livro aberto, capaz de receber qualquer história;, reforça Rodrigo de Oliveira.
Tranquilo e favorável
Numa leva de estreias de cinemas que incluem, neste mês, os documentários Pagliacci, A vida extraordinária de Tarso de Castro, João de Deus ; O silêncio é uma prece, Chega de fiu fiu e Em um mundo interior, o destaque desta semana ficará para O processo, que mostra a escalada de conchavos e de factóides que resultaram no impeachment de Dilma Rousseff. Conhecida pela repercussão positiva de documentários como Juízo, Justiça e Morro dos Prazeres, Maria Augusta Ramos admite que não existe isenção na feitura de longas. ;Todo documentário traz uma visão subjetiva e, obviamente, parcial da realidade. Tenho compromisso, certamente, com a ética, com a verdade e com o respeito pelas pessoas que estão sendo retratadas no filme. Sejam eles a favor do impeachment, ou não. Isso é algo que observo desde todos meus filmes anteriores. Tratei de pessoas que, em filme, viram personagens e que poderiam estar em lados opostos. O que me interessa é a interação entre os dois lados;, adianta a diretora.
Aos críticos convictos, a realizadora demarca, desde já: ;A produção do filme não teve dinheiro público. Ponto final;. Maria Augusta explica que o longa foi feito com recursos próprios e com crowdfunding ; ;inclusive apoiado por pessoas do judiciário, progressistas, por acreditarem na importância do tema do filme realizado com o foco no processo jurídico-político;. O Canal Brasil foi coprodutor, enquanto, fomento de instituição ligada ao Festival de Berlim e apoio do Netherlands Film Fund completaram o aparato de produção. ;Possivelmente, teremos, na distribuição, ajuda de recurso da Ancine;, completa a diretora.
Base na pesquisa
Engrossando o caldo das mulheres que vêm contribuindo para novas dimensões dos documentários nacionais, a montadora de filmes (também de ficção) Idê Lacreta, há 37 anos, trabalha na cena do cinema. A carrreira foi bem delineada pelas experiências anteriores dela com dança e música e de uma visão particular, que tem como ex-aluna de ciências sociais. ;Documentário depende da captação prévia de imagens e de ajustes na edição que garantam o estilo do olhar de cada autor. Tenho gosto pelo ensaístico, sem desqualificar os chamados ;talking heads; (filmes em que depoentes expressem, a todo momento, ideias e fatos). Prezo a intenção do diretor. Observo isso para construir a linguagem adequada;, comenta Idê, uma das montadoras do documentário mais visto em 2013, Helena (de Petra Costa) e do longa Maria ; Não esqueça que eu venho dos trópicos.
Idê pontua como certa injustiça o fato de o Brasil reservar menor orçamentos para documentários do que para ficção, um dado que dificulta parte da construção de narrativa, por vezes, dependente de material de arquivo. Pesquisar e acrescentar à memória algo limitada dos brasileiros estão entre as metas da montadora, mais vocacionada às abordagens poéticas de parceiros como o diretor Joel Pizzini, com quem trabalha atualmente no filme Rio da Dúvida ; Expedição científica Roosevelt-Rondon. ;No documentário há espaço para poética. Pizzini, por exemplo, traz personagens fantasmas para o longa dele. Sendo sul-mato-grossense, tem saberes dos índios e comenta muita coisa sobre decomposição de tribo e do contato nocivo com os brancos. Fico atenta para isso, por exemplo;, sublinha.
Três perguntas / Eduardo Chauvet
Que engrenagens beneficiam fitas como O renascimento do parto?
Percebo, nestes vários anos de trabalho, uma renovação nas plataformas disponíveis para o escoamento dos documentários. Isso aumenta, claro, a visibilidade dos filmes. Acabamos de negociar com a Netflix mais uma venda da nossa trilogia de O renascimento do parto, que é um conjunto de filmes concebidos para serem vistos em sequência. Para se ter ideia, com a primeira parte, nosso lançamento inicial foi destinado a três cidades. Inesperadamente, em 2013, fizemos a segunda maior bilheteria de documentário, atrás apenas do longa Helena. Agora, com O renascimento do parto 2, chegaremos a 25 cidades inicialmente. Comemoramos o alcance de altas redes de público. Em setembro, o terceiro filme chegará aos cinemas, e, consequentemente, o segundo filme, atualmente em cartaz, estará no Now, iTunes, Google Play e Canal Brasil.
A que atribui a escalada do filme, e como percebe o cenário atual dos documentários?
É um filme comercial, feito para ser entendido pelas pessoas entre 8 e 80 anos de idade. Estudamos o tom e o ritmo a ser usado. Buscamos um longa inquietante, feito para todo mundo que nasceu ; aliás, para todo seres humanos (risos). A gente sempre pare ou é parido. O filme convida a olhar para dentro da vida e ressignificar. Acho que temos eficiência, mas ainda pecamos pela diversificação de vozes. Os temas existem, múltiplos. Mas sinto falta de ver fitas de mulheres negras, criações de indígenas e da representatividade LGBT. No caso de O renascimento, acompanhar alguém gestando, é muito visceral, traz uma temática envolvente, em experiência que pode ser maravilhosa, fantástica ou até trágica.
O que impulsiona o fazer documental?
Virei cineasta no Brasil, há quase 10 anos, depois de intensa participação em rádio e tevê e de ter estudado seis anos na Temple University (Filadélfia, Estados Unidos). Vejo, daí a evolução de linguagens. Há facilidade no acesso às câmeras 4K, prontas para criações do dito cinema de guerrilha, feito com baixo orçamento. Ótimos equipamentos de som direto com fácil acesso também são uma realidade. Daí, o básico das filmagens está resolvido. Depois, é meter as caras e fazer exatamente o que te move. Tentar tocar, nas ideias, sensibilizar outro ser humano.
Esse é o seu primeiro filme. Como tem sido essa experiência?
Vou te falar que está sendo mais legal do que eu imaginava. Algumas coisas são surpreendentes para o bem, outras para o mal. Vem sendo um pouco difícil morar aqui em Brasília por uma única questão, o clima. Só isso. A cidade é ótima, o astral é incrível, mas o clima muito seco pega muito pra mim. É a única coisa realmente difícil para mim. Esse é o aspecto que pesa para o mal. Todos os outros são bons. A equipe é mais jovem do que eu imaginava, é uma equipe leve. A Cibele é uma doçura para trabalhar, uma diretora generosa que acata ideias, que deixa você colocar caco, que adora as suas piadas. Ela deixa a gente fazer como quer e gosta. Ela é louca para o bem. E tem a parte de eu ter levado mais a sério do que o normal quando me dei conta que ia ser protagonista. Eu lembro que eu falei para a Mônica Iozzi, que é a minha amiga: ;Eu não tenho bagagem;. Ela falou para eu fazer preparação. Eu fiz um intensivo, eu li e reli o roteiro mil vezes, eu fiz reunião aqui, eu vim preparado para esse filme. Então, não está sendo tão difícil quanto seria se eu não tivesse feito a lição de casa. Eu não vou mais me botar em nada sem fazer lição de casa.