Diversão e Arte

Ensaísta argentino Alberto Manguel de fine o perfil de loucos por livros

Ele mergulhou no tempo e espaço para encantar o público com a história do leitor

Vera Lúcia Oliveira - Especial para o Correio
postado em 19/05/2018 07:33
Niels Andreas/Folha Imagem


Alberto Manguel já nos encantou com a história da leitura, do livro e agora nos encanta novamente com a história do leitor. Em O leitor como metáfora ; o viajante, a torre e a traça (SP: Ed. Sesc, 2017), representações do sujeito louco por livros, temos uma belíssima edição em que tudo atrai os loucos por livros: as ilustrações, a cor do papel, a diagramação, mostrando o capricho, tornando o livro uma obra de arte.

Não bastasse o autor ser um renomado bibliófilo, possuidor de memorável biblioteca com mais de 30 mil exemplares escolhidos a dedo, é também editor e, atualmente, diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, sua cidade natal. E nessa biblioteca, durante quatro anos, ainda jovem, foi também guia e luz dos olhos de outro leitor: Jorge Luís Borges. Portanto, sua intimidade com os livros vem de longa data. Seu gosto pelo objeto livro e pela imaterialidade da leitura sempre foram os seus assuntos preferidos.
[SAIBAMAIS]

Em Uma história da leitura, A biblioteca à noite, Os livros e os dias, e agora neste O leitor como metáfora, viajamos com ele no tempo e no espaço ; o livro como viagem, e o leitor como viajante, desde os primeiros grandes leitores do ocidente, como Santo Ambrósio e Santo Agostinho, relembrando o que disse São João em seu evangelho: ;no princípio era o Verbo; em que ;estava definindo tanto sua tarefa de escriba como a de autor em si.;

O que mais impressiona em Manguel é a sua capacidade de trocar em miúdos os temas mais eruditos de maneira a torná-los simples, acessíveis a todos os leitores, levando-os em sua viagem. A sua escrita é clara como a luz da lua. Para justificar o seu tema, a metáfora, lembra que Cícero disse que a metáfora surgiu para suplantar a pobreza da língua, ineficiente para nomear de maneira exata a nossa experiência concreta. A metáfora diz mais e melhor. Sempre.

Assim, para caracterizar os três tipos de leitores, Manguel pensa primeiro no viajante, aquele que conhece o universo por meio da palavra escrita. Ou seja, viaja sentado no sofá. Desde a Bíblia, ;o livro é o único veículo que permite que a palavra de Deus viaje pelo mundo, e os leitores que o seguirem tornam-se peregrinos no sentido mais profundo e verdadeiro.;


; As sociedades sempre tiveram, perante o que pode ser criado com palavras, uma desconfiança do próprio ato intelectual. Somos os livros que lemos;
Alberto Manguel, ensaísta


A leitura reproduz a experiência do mundo a esse leitor viajante. Santo Agostinho conta que chorou quando leu a morte da apaixonada Dido. Ele ;viajava; com a Eneida, de Virgílio. Para Manguel, ;o ato de ler uma única linha, de modo profundo e abrangente, trazia para Santo Agostinho o eco de todas as nossas bibliotecas, passadas, presentes e futuras, com cada palavra remontando a Babel e antecipando a última trombeta. Significava um constante deslocamento de uma experiência adquirida para a seguinte, uma leitura nômade através da memória em direção ao desejo, consciente da estrada percorrida e da estrada ainda a percorrer.;

Para o renomado romancista holandês Caes Nooteboom, a viagem da leitura é um meio mais rico de estar em casa consigo mesmo. Experiência compartilhada por Montaigne quatro séculos antes. E os viajantes ilustres são muitos.

Mas o melhor do livro são os leitores da torre. Os que escolheram o isolamento para refletir sobre o mundo. Desde os primeiros cristãos que se isolaram para encontrar Deus, passando por Demócrito, que se retirou do convívio dos homens porque não queria fazer parte do mundo, por São Jerônimo que formou uma grande biblioteca que ele amava acima de tudo e na qual se isolava, Manguel lembra que ;na tradição judaico-cristã, a torre aparece como símbolo de força protetora ou de beleza perfeita. O livro dos Provérbios diz: ;O nome do Senhor é torre fortíssima: o justo corre para ela, e nela encontra refúgio;;.

Mas a expressão ;torre de marfim;, como a conhecemos e utilizamos modernamente, foi empregada pela primeira vez, talvez, pelo crítico francês Sainte-Beuve para contrastar a poesia abstrata de Alfred de Vigny à politicamente mais engajada de Victor Hugo: ;É Vigny, mais discreto,/ Como que para sua torre de marfim, retornava antes do meio-dia.; E o ponto alto do leitor da torre ficou reservado para Hamlet, o príncipe intelectual de Shakespeare, analisado aqui por grandes especialistas. Ser ou não ser intelectual, eis a dúvida do príncipe da Dinamarca.

Agir ou encerrar-se na sua casca de noz, eis a questão. Há ainda a torre de Gramsci, oposta à de Hamlet, que deve ser um território crítico, já que todos podem ser leitores levando a sua experiência a campo aberto, ao mundo. Esse leitor reflexivo da torre se vê hoje confrontado com a dificuldade de ler um só texto, pois é tentado pelo demônio dos meios eletrônicos a apenas mordiscar um pedacinho de cada leitura.

O último tipo de leitor, assim como o minúsculo inseto, a traça, só vê graça na vida se estiver mergulhado nas páginas de um livro. Ele vive tão intensamente o prazer da leitura, que se apaixona por personagens fictícios tornando-as muitas vezes reais. Outros, como o louco dos livros, Dom Quixote, (obra que Flaubert sabia de cor antes de aprender a ler), assim chamado pelo autor Cervantes, geraram desconfiança quanto à sua sanidade mental.
E outros, ainda, considerados perigosos por ;devorar; livros, atestando o temor e a ;desconfiança que as sociedades sempre tiveram, perante o que pode ser criado com palavras, uma desconfiança do próprio ato intelectual;, diz Manguel. ;Somos os livros que já lemos.; Viajante, torre, traça.

Vera Lúcia de Oliveira é professora de literatura

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