Diversão e Arte

A saída de Dilma não passou despercebida pelas lentes da sétima arte

"O processo", da diretora brasiliense Maria Augusta Ramos, está em cartaz na capital que foi palco para o impeachment

Ricardo Daehn
postado em 22/05/2018 07:46

Maria Augusta Ramos: carreira talhada pela ética no cinema

Com uma câmera na mão e um arsenal de ideias ; tanto na cabeça quanto a serem retratadas em filme ;, a diretora brasiliense Maria Augusta Ramos formulou o premiado documentário O processo, recém-estreado na capital e em outras 23 cidades do Brasil. Com uma equipe bem pequena, a documentarista desvendou parte da derrocada do governo do PT no país. ;A gente teve uma só câmera na maior parte da produção. Só tivemos duas no julgamento de impeachment que ocorreu no Senado. Nas reuniões, nas comissões ; tudo foi filmado. De vez em quando, até eu manejava a câmera. Isso é trabalho de cinema ; está aí a capacidade técnica da gente;, comenta a cineasta.


Depois de tomar parte em festivais ; como o É Tudo Verdade ; O processo (sem dinheiro público, na produção) trouxe empenho da diretora para que fosse distribuído, logo, no Brasil. ;O filme nos afasta de preconceitos, do que foi vivido por todos, ou seja, precisamos ver o filme como cinema;, reforça a diretora, que acrescenta: ;Não existe isenção. Todo documentário é uma visão subjetiva e, obviamente, parcial da realidade. Persigo, porém, a ética;.


Qual foi o maior cuidado, ao realizar o filme O processo?
Segui o modo como retratei pessoas e fatos em Justiça (2004), Juízo (2007) e Morro dos Prazeres (2013). Trata-se de pessoas que viram personagens nos meus filmes, e que estão em lados que poderiam ser opostos. O juiz, o desembargador, o acusado, a polícia da unidade pacificadora de uma comunidade ou de outra. Tento absolutamente ter respeito; o que me interessa é a interação entre o dois lados, neste caso, no processo de impeachment da ex-presidente Dilma. Como se deu tudo ; independentemente de ser ou não golpe.

Que interação está representada?
Me interessa o desenrolar, com os discursos dos dois lados. Como isso afeta os personagens envolvidos, tanto em termos de defesa quanto, de uma certa maneira, a acusação. Claro que eu tive um acesso muito maior à defesa da presidente ; à liderança da minoria. Obviamente, no filme, contemplo mais este lado, porque tive um acesso bem maior. Não deixei de mostrar, por exemplo, os argumentos a favor do impeachment. A própria advogada de acusação é apresentada da mesma maneira que apresento o advogado de defesa. É uma tentativa de rever tudo isso que nós vivemos, como país e nação.

Foi forte a opção de deixar o ex-presidente Lula tão à sombra no filme... E você optou por não colocar o famoso telefonema do ;Tchau, querida;. Quais são os motivos?
Não se trata de Lula ter sido uma figura passageira. Vou voltar para o contexto do processo jurídico-político da fita: o filme tem duas horas e 16 minutos. Imagina! Não dá para contemplar tudo... Claro que foram feitas escolhas, e o filme começa já na votação da Câmara. Não cabe aquele telefonema. É uma questão de conteúdo ; achei que não cabia, que não era necessário. As argumentações dos políticos a favor do impeachment estão claras e muitas delas estão no filme. É interessante que, talvez, pela primeira vez, se contemple, e se dê voz à narrativa contra o impeachment. A gente passou meses e meses ouvindo argumentos a favor do impeachment: estavam 90% na imprensa nacional e ninguém discutia isso. Ninguém reclamava. No momento em que um filme acontece e expõe ; sim, com cuidado e com respeito ; a outra narrativa, isso incomoda. O filme veio preencher uma lacuna que era essencial para a formulação de diálogo. Fiz uma opção digna, com toda a confiança: era preciso trazer elementos, claramente.

Você fala da sua ideologia?
Como todo indivíduo, tenho visão social e política, como qualquer ser humano. O filme, porém, é muito mais do que minha visão política. O cinema tem sua capacidade de gerar maior reflexão. Não quero que fique simplesmente reduzido à minha posição política. É o produto de uma descoberta, de um processo cinematográfico. Não faço filme para defender tese. Não vim para defender tese contra o impeachment. Quis, sim, entender, compreender como ele se deu. A descoberta aconteceu durante o filme: eu não conhecia nenhum dos personagens.

Que proposta assume, em O processo?
A minha intenção veio de definir um enfoque, um parâmetro. Não sou uma documentarista que sai filmando ; filma tudo ; e resolve o filme na edição. A gente tentou, de certa maneira, focar. É impossível dar conta de tudo. Foquei no que me interessa: o processo jurídico-político. Escolhas são feitas. E foram feitas também na votação da Câmara dos Deputados, em que foi decidido que o processo passaria para o Senado. O meu filme trata do processo se dando no Senado, independentemente de política. Era necessário retratar como o processo se desenrolou. Acho isso essencial. Um filme, em si, tem todo um significado. Espectadores podem rever suas posições sobre um determinado tema.

Você acha que se distanciou dos dois lados?
A proposta do meu cinema não é uma proposta de filmes para defesa de teses. Espero, portanto, que o público possa tirar suas próprias conclusões, num ato de reflexão. Isso não quer dizer que é um filme vento, um filme imparcial. É uma proposta de cinema mais reflexivo. O distanciamento existe, formalmente, no sentido de o público ser colocado fora da ação, pela maneira como o tema é retratado, e não no meio da ação. Isso já gera um distanciamento que encaminha o espectador a refletir.

Você viu o ano eleitoral como o melhor para lançar o filme?
É importante para entender, para tentar compreender melhor o que está se passando no país atualmente. O filme tem que ser visto ; a gente faz filmes para isso. Ele não é um filme panfletário, não faço cinema nessa linha. Quero que o filme possa contribuir para voltarmos a ter um diálogo.

Que grande perda o país vem sofrendo?

Precisamos deixar essa ideia de sermos duas torcidas, como se fosse futebol, e voltarmos a ser uma nação. As pessoas precisam voltar a dialogar. Membros de uma mesma família devem voltar a dialogar ; aliás, estamos tão polarizados que até esse tipo de coisa acontece. Deixamos de pensar o país de uma maneira construtiva e estamos entrando num processo destrutivo de desconstrução do país que é muito triste e que é algo que não interessa a ninguém, seja de direita, seja de esquerda. Há, no filme, momentos em que o PT faz uma reavaliação do seu papel. Isso é muito importante, por isso, mantive aquelas cenas no filme.

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