Uma história curiosa marca o início da parceria que dividiria a cinematografia de ficção científica em antes e depois de 2001: uma odisseia no espaço. Da varanda do apartamento do diretor Stanley Kubrick, o escritor Arthur C. Clarke percebeu um ponto de luz brilhante e agitado no céu de Manhattan. Os dois armaram o telescópio de Kubrick e passaram a observar o OVNI. Clarke, que entendia do assunto e acompanhava a movimentação dos satélites americanos graças a uma tabela liberada pela Nasa e publicada no The New York Times, não conseguiu associar o ponto a nenhum dos equipamentos mapeados. O escritor interpretou o evento como um sinal e decretou: ;Isso é coincidência demais. Eles estão querendo nos impedir de fazer esse filme.;
Eles, seja lá quem fossem, não conseguiram. 2001: uma odisseia no espaço foi lançado em maio de 1968 e se tornou um marco na história do cinema com suas referências tão filosóficas quanto enigmáticas e um visual que Kubrick costumava comparar a uma experiência musical. A história minuciosa de como nasceu o filme está contada em 2001: uma odisseia no espaço ; Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a criação de uma obra-prima, de Michael Benson.
Jornalista, artista plástico e cineasta, Benson é uma referência na cobertura de temas relativos à ciência. Em 2003, escreveu um artigo sobre a missão da Nasa a Júpiter que acabaria selecionado para a antologia The best american science writing 2004. Autor de livros como Planetfall e Far out: a space-time chronicle, nos quais combina arte e ciência ao usar fotografias do espaço, o escritor encantou o diretor Terrence Malick, que acabou por contratá-lo como consultor e produtor das sequências cósmicas A árvore da vida. O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes (2011) e foi indicado para o Oscar de melhor filme e direção.
Benson é fruto de uma época na qual a corrida espacial despertava a fantasia de crianças e adultos. Nascido em 1962, estava com 6 anos quando viu 2001: uma odisseia no espaço pela primeira vez. ;O filme me impactou pelo resto da vida, sem exagero. Mudou a maneira como eu via o mundo e a condição humana. Fiquei fascinado pelas implicações do filme, pelo olhar que versa sobre o universo e pela possibilidade da inteligência artificial;, conta. ;E me ocorreu, várias vezes, que poderia ser interessante olhar pelo buraco da fechadura, tentar ver como foi feito.;
Benson conheceu Arthur C. Clarke em 2001. Na época, conversou sobre o filme e passou a alimentar a ideia de um livro sobre os bastidores da produção. A pesquisa começou com centenas de horas debruçado sobre os arquivos de Stanley Kubrick, na Universidade de Londres, e de Clarke, no Smithsonian National Air and Space Museum, em Washington. ;Eu tinha muitas fontes de informações e escrevi o livro em sete meses. Foi um trabalho intenso;, conta.
Um trabalho que traz revelações preciosas para os admiradores do filme. O autor conseguiu reconstituir cada passo do encontro do diretor com o autor e da produção do longa. Deixa claro como o roteiro, criado a partir do conto A sentinela, escolhido entre seis outros textos de Clarke, foi um trabalho conjunto. O autor não sabia escrever roteiros para cinema e ficou aliviado quando Kubrick sugeriu que escrevessem, primeiro, um romance. Apesar de ter uma produtora e um escritório oficial, Kubrick preferia trabalhar em casa porque gostava de ficar perto dos filhos. Já Clarke gostava do Chelsea Hotel, reduto da vanguarda novaiorquina nos anos 1960 e sua casa na cidade durante a produção do longa.
Foi, aliás, uma concessão de Clarke passar um ano em Nova York para trabalhar no filme. O autor morava no Ceilão (hoje Sri Lanka) e sentia saudades dos trópicos. Segundo a pesquisa de Benson, diretor e escritor foram extremamente ingênuos quando estipularam prazos e deadlines. No primeiro cronograma de 2001, o roteiro estaria pronto em três meses e meio, a identidade visual do longa em um mês e as filmagens levariam 20 semanas. Era 1962 e o filme só ficaria realmente pronto quatro anos depois.
É interessante também descobrir como se chegou à forma do misterioso monolito depois de Kubrick passar por vários possíveis formatos de alienígenas. O diretor foi aconselhado por Carl Sagan a não dar forma alguma aos extraterrestres, mas ignorou o astrofísico por achá-lo um tanto arrogante. ;Sugeri que qualquer representação explícita de um ser extraterrestre avançado estaria sujeita a pelo menos um elemento de falsidade, e que a melhor solução seria insinuar;, conta Sagan. Para se chegar à elegância de HAL, o computador que assume o controle da nave em 2001, foi preciso passar por ideias risíveis. ;O precursor de HAL é chamado de Sócrates, tem aproximadamente o tamanho e a forma de um homem;e caminha sobre pernas compostas por uma intricada montagem de amortecedores deslizantes;;, escreve Benson.
Os produtores ligados a Kubrick, de início, não gostaram da ideia de uma ficção científica. O sucesso do então recém-lançado Dr. Fantástico não deveria ser ofuscado por um gênero que, segundo Benson, só não era considerado menor que a pornografia. Até então, poucos filmes de ficção científica, espaço, alienígenas e inteligência artificial conseguiam ir além de um pastiche com robôs e humanoides de gosto nada confiável.
Publicado para comemorar os 50 anos de filme, o livro traz ainda um caderno de fotografias com o making of das filmagens. Benson acompanha toda a trajetória do longa até a morte de seus dois criadores e dá a Clarke e Kubrick a mesma importância na concepção da obra.
2001: uma odisseia no espaço ; Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a criação de uma obra-prima
De Michael Benson. Tradução: Álvaro Hattnher e Cláudio Carina. Todavia, 494 páginas. R$ 84,90