Diversão e Arte

Ficção inquietante de Gustavo Pacheco fala do ser humano

Autor radicado em Brasília é um dos convidados da Flip

Nahima Maciel
postado em 07/07/2018 07:30

Gustavo Pacheco gosta de transitar entre os contos e os romances, sem se prender a um gênero específico
É com olhar de distanciamento, de muita inquietação e de estranhamento que Alguns humanos pede para ser lido. Primeiro livro de contos de Gustavo Pacheco, essa reunião de 11 histórias causa mais que incômodo, perturba e sugere reflexões que talvez surpreendam o leitor de um modo produtivo.

Dohong é o protagonista do primeiro conto. Não é o narrador, mas é o dono do ponto de vista dessa história baseada em fatos e relatos. O autor recupera o episódio do pigmeu enjaulado em um museu do Bronx (Nova York) no início do século 20 e narra o ocorrido a partir da perspectiva de um orangotango. Em Zakaly, é o ponto de vista de uma criança capturada na África e embarcada em um navio negreiro que embala o leitor. Baseado em nota de rodapé de livro sobre história da escravidão, Pacheco trouxe para o conto um episódio raro de rebelião de escravos embarcados. O olhar infantil do personagem fisga o leitor e joga lente de aumento na brutalidade da escravidão, que toma proporções extremamente cruéis na voz de Zakaly. Mais adiante, um conto passado no Museu de História Natural de Nova York questiona o porquê de índios e pigmeus serem representados da mesma forma que animais pré-históricos enquanto não há sequer uma representação de uma família ocidental. ;Por que há dioramas dos pigmeus mbuti, mas não dos franceses e alemães ou, por falar nisso, dos americanos? Por acaso a sociedade mbuti é menos complexa do que a sociedade francesa, alemã ou americana?;, questiona o narrador.

E assim segue. Kuek foi um escravo comprado pelo príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied. O jovem africano integrava uma coleção de curiosidades e viajava pelo mundo como tal. Hoje, seu crânio é manipulado como, novamente, uma curiosidade. Ponto para a bizarrice das escolhas humanas. Julia Pastrana foi a mulher mais feia do mundo, segundo um jornal mexicano, e o retorno de sua múmia ao país natal causa frisson. As histórias de Pacheco são assim, bizarras sim, cheias de humor negro e passagens que podem parecer delirantes, mas que, na maioria das vezes, são baseadas na realidade, o que causa certo espanto, como se a humanidade olhasse para si mesma com desconfiança.

Muita pesquisa embasa os 11 contos publicados nesse volume com um olhar antropológico, porque essa é a formação do autor, que confunde e propõe uma revisão da ;normalidade; da qual acreditamos sempre sermos portadores. ;Eu me sinto muito à vontade na antropologia, o espírito antropológico de olhar com curiosidade, com distanciamento, inclusive para nossa própria cultura, é algo que gosto muito. E tem várias coisas ali que são uma espécie de gestão de questões, de temas, de histórias que eu vivi ou que entrei em contato;, avisa o autor.

Radicado em Brasília, Gustavo Pacheco, 46 anos, nasceu no Rio de Janeiro e trabalhou no Museu de História Natural antes de se tornar diplomata. Como funcionário do Ministério das Relações Exteriores (MRE), morou em várias cidades, mas foi em Buenos Aires (Argentina) que assumiu a escrita com seriedade. O ambiente literário da cidade e suas oficinas de escrita criativa ajudaram a encarar e dar forma às notas tomadas displicentemente ao longo dos anos. Alguns humanos é o primeiro livro e aquele que fez o autor ser convidado para umas das mesas da Festa Literária Internacional de Paraty 2018 (Flip). No palco, ele estará acompanhado de Sérgio Sant;Anna, referência do gênero conto na qual Pacheco se inspira com afinco. Em conversa com o Correio, o escritor revela como chegou aos contos, escritos ao longo de sete anos, e como a experiência com gêneros literários intermediários pode ser muito mais interessante que o próprio conteúdo.

Gustavo Pacheco gosta de transitar entre os contos e os romances, sem se prender a um gênero específico


Entrevista /Gustavo Pacheco

Você diz que algumas coisas vividas inspiraram os contos. Como é isso?
Mais do que episódios específicos, acho que tem a ver com uma certa sensibilidade, com um certo olhar antropológico. Algumas dessas histórias, eu topei com elas em livros. As histórias nunca são integralmente calcadas na realidade, têm sempre alguma adaptação. Gosto muito de conjugar várias dimensões, prender a atenção do leitor para que ele não sinta que perdeu seu tempo. Gosto também que faça pensar, que provoque algum tipo de reflexão ou de curiosidade para conhecer mais sobre determinado tema. Tudo isso, pra mim, é relevante, faz parte da experiência da leitura. É isso que procuro como leitor e como escritor.


Você falou em empatia com o leitor. Empatia é algo que falta hoje?
Sim, sem a menor dúvida. A questão da empatia, às vezes, é colocada com um sentido moral que nem sempre traduz uma real necessidade, ou o que está realmente envolvido quando a gente fala em empatia. Empatia não significa assumir, de maneira acrítica, outro ponto de vista, não significa estar em busca de uma noção idealizada do que seria entendimento. Empatia tem a ver com abrir a percepção, com ver mais coisas, inclusive coisas contraditórias. E me preocupei muito em apresentar contradições. Tem essa noção clássica de que trazer mais perguntas é mais forte que trazer respostas. Não quero trazer respostas, pelo contrário, quero bagunçar o coreto. Essa ideia de que empatia é uma resposta, não é bem por aí. Empatia serve para bagunçar o coreto e, ao bagunçar o coreto, é que é possível algum progresso.


Os contos também são uma crítica à sociedade contemporânea?
Acho que não só à sociedade contemporânea, mas às limitações de pensamento em geral. O desafio é fazer isso de maneira convincente e a maneira mais fácil de fazer isso de maneira convincente é trabalhar com base na realidade, nessas histórias que parecem inventadas, mas não são.


O conto é um gênerono qual você se sente mais à vontade?
Gosto muito de explorar as formas intermediárias, tanto entre o conto e o romance quanto os gêneros intermediários entre ficção e não ficção. Quero explorar certas ideias e a forma que elas vão assumir, se vai ser um conto mais tradicional ou um romance mais tradicional ou algo entre os dois, se vai ser menos importante que a ideia. Acho que a indústria está mais preocupada com essa taxonomia do que com os escritores.



Alguns humanos
De Gustavo Pacheco. Tinta da China Brasil, 144 páginas. R$ 65. Lançamento quarta, 11 de julho, às 19h, no Beirute Sul

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