Diversão e Arte

Centenário de Bergman é lembrado com documentário no cinema

Em entrevista ao Correio, a diretora do documentário conta das qualidades e mazelas que acompanharam o cineasta que terá homenagens na tevê

Ricardo Daehn
postado em 14/07/2018 06:30
Ingmar Bergman trava diálogo com a personagem mais recorrente na obra: a morte
Ao mexer com a imagem do sueco Ingmar Bergman, um símbolo sagrado no Panteão dos mestres absolutos do cinema, a realizadora Jane Magnusson, do documentário Bergman ; 100 anos (em pré-estreia, hoje, na capital), alcançou o mérito de reavivar o interesse por uma obra que deu norte para boa parte do incremento da linguagem do audiovisual. Na opinião dela, muitos já não se davam conta da aura de ;rock star; associada ao Bergman que transitava em meados dos anos de 1950. ;Hoje em dia, muitos jovens me interpelam, e dizem: ;sempre achei que Bergman se tratasse de um velhote maldoso;. E completam: ;Quero, a partir de agora, assistir aos filmes dele;;, explica Jane, ao Correio. Vale a lembrança de que diretor morreu em julho de 2007, aos 89 anos.

Intervir no que chamava de a ;membrana da realidade; foi a constante força a mover o diretor de clássicos como Fanny e Alexander (1982), Através de um espelho (1961) e A fonte da donzela (1959). O documentário Bergman ; 100 anos integra parte de um projeto ainda mais amplo ; uma série de quatro horas que condensa mais de 400 horas de material produzido ou examinado por Jane Magnusson. Entre gargalhadas e risos, além de anedotas suculentas e da exposição de atmosfera ríspida, o espectador tem o privilégio de acompanhar filmagens dos bastidores do trabalho de Bergman.

É claro que, por mais amena que venha a narrativa, nunca se desgruda das questões vitais para a identidade da filmografia de Bergman, encharcada por fatos como o pai ter sido pastor luterano, de ele ter uma adoração pelo poder lúdico do mundo das marionetes e de acreditar, sobremaneira, no poder do teatro. Isso sem falar na fama de plantar incertezas existenciais, entregando poucas respostas nos seus filmes. Há momentos-chave, no documentário, para entender o universo do homem apegado a neuróticos jogos de poder, dentro do campo profissional que praticamente encerrava sua existência.

A percepção das imagens, claro, salta ao primeiro plano, como ele mesmo entrega, numa fala: ;Noto que a câmera vê muito mais do que eu. É uma ferramenta fundamental quando se trata de registrar a alma humana;. Noutro tópico, fica patente a pontuação intimista de toda a sua obra: quando arguido sobre as perdas e limitações com a tevê, de ;menor escopo;, ele desconversa, dizendo que ;o que é fascinante sobre a tevê é a possibilidade de produzir planos fechados;. Seria ; com closes dos atores ; um ganho para aquilo que sempre preconizou nos filmes estimulados por meio de memória, experiência e tensão.

Inédito no Brasil, o documentário Ingmar Bergman ; Por trás da máscara, estreia hoje no Curta! (canal da Net). Com exibição às 22h10, o filme enfoca a época em que o cineasta criou Persona (1966), realizado, em meio à crise, na Ilha de F;r;. Foi a inaugural ponte para o estabelecimento de estreita relação (inclusive fora das telas), com a atriz Liv Ullmann. O documentário (com reprise amanhã, às 10h35) tem quase uma hora de duração, e foi conduzido por Manuelle Blanc.
Para quem ainda não conhece a obra de um dos mais influentes artistas do século 20, vale ainda a dica de uma maratona de filmes esquematizada com a exibição de seis títulos do sueco. Com exibição na rede paga Telecine (no canal Cult), o programa traz às 12h45, o desesperançoso longa O ovo da serpente (com David Carradine e Liv Ullmann, numa trama que recria período de guerra), enquanto às 14h55 será a vez do clássico absoluto Fanny & Alexander (ganhador de Oscar), e que retrata, em muitos momentos, a infância do mestre do cinema. Filmes que consagraram o estilo denso do modernizador da linguagem cinematográfica estão previstos para as 18h15 (O sétimo selo) e, para as 23h35, Morangos silvestres. Dramas e jogos de interpretações femininas se estendem pelas tramas de Sonata de outono (às 20h05) e Persona ; Quando duas mulheres pecam, às 22h.


Entrevista/ Jane Magnusson
Em entrevista ao Correio, a diretora do documentário conta das qualidades e mazelas que acompanharam o cineasta que terá homenagens na tevê

Bergman soube falar das mulheres? Quais os filmes dele que mais admira? Por que, no seu documentário, a atriz Liv Ullmann aparece renegando o caráter violento do ex-marido?
Existem muitos filmes dele que admiro e outro tanto que desgosto. Acho até mesmo que alguns filmes dele são horríveis. Os retratos de mulheres que fez são os mais excepcionais: Sonata de outono, O silêncio e Persona, ainda hoje, são filmes à frente do tempo. Entre outros ganhos, ele nos revelou o quão potente era colocar duas personagens femininas protagonizando um longa. Quanto a Liv, não sei o porquê de ela adotar aquela postura, mas, refletindo, pensamos: vamos deixar ela ir por aí. Assisti, antes, às entrevistas em que contava das brigas, das surras. Liv tem, por direito, adotar o tom que queira. Não vou julgá-la, nem desafiar ela, confrontando realidades que ela mesma descreveu, anteriormente.

Quais as maiores dificuldades para Bergman ; 100 anos?
Prevemos uma série de tevê com quatro horas de duração, e ainda o filme de duas horas que chegará aos cinemas. Todo o nosso processo de edição levou três anos e meio. Pode parecer mentira da minha parte, mas é a límpida verdade: não sou obcecada por Bergman. Sou apegada, na verdade, por boas histórias. Tinha feito um filme sobre a sala de vídeo de Bergman. Quando da morte dele, tudo que possuía (e toda a casa dele) passou por rigoroso processo de catalogação. Levaram tudo para Estocolmo, para um leilão. Uma firma norueguesa adquiriu, e tudo retornou para a casa dele. A única que coisa não leiloada, na ocasião, foi o conteúdo da sala de vídeo. Catalogaram as músicas que ouvia, toda a biblioteca; exceto os filmes aos quais ele assistia. Tratava-se 1711 fitas de vídeo! E, houve descaso, justo com isso?! Acho que o fato estava associado ao culto do vídeo ter carga trash ao ser ladeado por toda a produção artística dele. Saber que ele gostava da série Dallas, e das pessoas tanto quanto dos filmes (risos)...
Mexer com Bergman é intimidador?
Tenho por vontade reavivar o interesse das pessoas pela produção e obra dele. Até mesmo, na Suécia, acredito que muita gente já perdeu de vista o tipo de rock star que Bergman foi aos meados dos anos de 1950. Todos lembram do velho rabugento, maldoso, que, no teatro, acentuava a dramaticidade e limava tudo o que fosse divertido. Quero lembrar as pessoas da versão anterior deste homem, muito diversa. Não dependeu apenas dele, isso de ver erguido um castelo de intocabilidade à sua volta ; de todos se limitarem a fazer exatamente o que viesse a dar satisfação para Bergman. As pessoas foram permissivas, diante de todo o lucro que ele representava. Gozamos de uma certa culpa coletiva, na criação deste autor irretocável, instituído ao fim da carreira.
Qual o maior recorte valorizado no filme?
Foi o ano de 1957, que pincei por achá-lo tão interessante. Me dei conta, ao final do meu filme anterior (Bergman;s videos). Daí, quando me chamaram para a celebração do centenário, propus o recorte de privilegiar 1957. Nas pesquisas para o filme, entretanto, fui percebendo a loucura, loucura e a maior loucura na quantidade de trabalho avolumado, naquele ano de 1957. Mesmo com a estreia de O sétimo selo e Morangos silvestres, Bergman montou três peças de teatro, produziu para a tevê e ainda para o rádio. E ainda, em meio a tudo, desponta uma vida pessoal e amorosa catastrófica. Não quis fazer, de modo cronológico, mais um daqueles filmes: ;Este é nosso amado artista, Bergman;.
Como desvendar segredos do mestre?
A dificuldade era a de encontrar pessoas que tivessem trabalhado com ele e ainda estivessem vivas. Entre eles, estava G;sta Ekman, de uma família de populares atores e diretor-assistente de Bergman, aos 20 anos. Ele já foi tão exaustivamente entrevistado, porém, nunca tinha falado especificamente daquele período tão produtivo de 1957. O curioso é que justamente Bergman entrega de bandeja o que havia de mais picante a ser explorado em sua vida. Ele está regularmente contando de quão falho foi, na função de pai; o quanto foi perverso com mulheres e de como tinha admiração por Hitler. Ele fica exaltando estes aspectos negativos dele. Em momento algum, ele diz: "Eu sou o máximo". Quando muito, diz: ;gosto de Persona e de Gritos e sussurros, filmes que estão na categoria ok; (risos). Ele não diz o quão grande foi, mas sabe sublinhar o tipo de demônio que foi. Isso é algo a ser prezado. Não gosto, em nada, de ele demonstrar apoio para Hitler; mas há de se ter a perspectiva de que, durante a Segunda Guerra, a maior parte das pessoas abraçou este apoio. Mas, tudo escamoteado e à base de silêncio.
E quanto ao exílio por problemas com o fisco sueco?
Aí, o vejo como espalhafatoso. De fato, Bergman era culpado. Ele pagava atores com fundos dos quais nunca houve dedução de impostos. E isso é ilegal! Ele até expôs isso, mas de um modo muito dramático. Deveria ter se atido a pagar, e seguir trabalhando na Suécia. Preferiu a versão de se dizer perseguido, tratado como criminoso. Ele chegou ao ponto desnecessário de deixar o país.


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