Italo Moriconi Especial para o Correio
postado em 28/07/2018 07:30
Redescobrir, revisitar Hilda Hilst traz os prazeres de explorar os meandros e ampliar a visão de uma obra completa, vocacionada à consagração no cânone literário, ao mesmo tempo capaz de alimentar projetos de ponta não só na literatura, mas também no teatro, performance e outras áreas artísticas. Na poesia, Hilda foi uma não modernista, porém moderníssima. Na prosa, uma exploradora dos limites da sintaxe e da representação literária do eu. Na sátira erótica, é para ser igualada ao que há de melhor no gênero em língua portuguesa, num clube de muitos varões, antigos e contemporâneos, héteros e gays, de Gregório de Matos a Bernardo Guimarães, de Glauco Mattoso a Valdo Mota.
Vida e obra de Hilda Hilst são marcadas por um deslocamento decisivo, ocorrido no curto espaço de tempo que vai do ano de 1966, quando a poeta se muda para a Casa do Sol, até 1970, quando publica pela Perspectiva seu primeiro livro em prosa ; Fluxo-floema, com prefácio de Anatol Rosenfeld. Muito pode ser ainda pesquisado sobre o lugar e o tempo da mutação de Hilda. A Casa do Sol tornou-se um cenáculo da vida literária paulista durante pelo menos duas décadas. Tendo abandonando a vida social mundana (mas não a vida social entre amigos), Hilda opta por levar uma ;vida de escritor;.
Um passo corajoso. Não se tratava de vida de escritora apenas ou principalmente no sentido profissional da palavra. Era vida de escritor no sentido existencial, visceral. Era a viagem à roda do quarto, ou à roda do pátio, tendo o mundo e todas as esferas cósmicas e telúricas à mão através dos livros. Hilda dedica-se disciplinadamente à leitura e escrita, alheia a encomendas ou adiantamentos editoriais.
Vida de escritor: ter tempo para escrever. Como indicaram recentemente depoimentos de Jurandy Valença e Olga Bilenky, em evento pré-FLIP sobre Hilda no Rio, ;ter tempo para escrever; era uma questão central para Hilda, foi mesmo a moeda que ela ofereceu a Jurandy para mantê-lo perto de si. ;Ter tempo para escrever; é certamente o principal motivo de quem opta por vida de escritor. Pode ser o nó inextricável de uma angústia de vida, como no caso de um João Gilberto Noll. Mas é também uma grande conquista para quem consegue. A Hilda desse final de anos 60 triunfava. Agarrou seu tempo e não pretendia jogá-lo fora. Na esfera da sobrevivência financeira, Hilda teve a sorte de, a partir de certo ponto, contar com a bolsa de escritora residente da Unicamp.
Em seu novo habitat, Hilda escreve oito peças de teatro, gênero ao qual nunca mais voltará. Somos tentados a encará-las como exercícios em que a escritora artista treinava a mão. Hoje uma nova geração de leitores se interessa por essa produção, que está sendo republicada pela LP . Porém, como no caso de Caio Fernando, atualmente a maioria das montagens de textos de Hilda é adaptação de sua prosa.
Hilda queria ir além do gênero poesia. Não abandoná-lo, como não abandonou, mas encontrar um modo de criação que rompesse as amarras do verso, da forma acabada, da gramática. Era o desbunde na vida e na arte. Sua opção final foi a prosa de ficção. Ao pulverizar a voz narrativa, encontrou a solução para a dramaticidade desejada, levando-a para dentro da prosa. Decididamente, ela não seria apenas uma contadora de histórias. A meta era a escrita. Sem deixar de lado a fabulação, seu texto irá narrar a experiência mesma de escrever. É a épica do narrar mais que a épica (ou antiépica, na clave moderna) do narrado.
Fluxo de múltiplos gêneros
Já no pórtico de Fluxo-floema, a autora deixava claro seu ponto de partida, que na verdade era o ponto de chegada de suas reflexões críticas. Se a escrita ficcional tinha sido revolucionada pelo fluxo de consciência, era preciso dar um passo à frente, assegurar uma linha evolutiva. O referente imediato já não podia mais ser Joyce ou Virginia Woolf, e sim o Beckett da trilogia Molloy, Malone Dies e The Unnamable. Devemos considerar a epígrafe de Fluxo-floema, extraída de Molloy, como uma síntese perfeita do projeto de escrita a que chega Hilda. Vale reler: Havia em suma três, não, quatro Molloys. O das minhas entranhas, a caricatura que eu fazia desse, o de Gaber e o que , em carne e osso, em algum lugar esperava por mim. (...) Havia outros evidentemente. Mas fiquemos por aqui, se não se importam, no nosso circulozinha de iniciados.
É no terreno beckettiano da pulverização do sujeito narrador, incorporando o tom sarcástico da caricatura de si, que se situa toda a obra ficcional de Hilda Hilst. Claro, a referência dos textos ditos pornográficos dos anos 90 é outra. Sua irrupção na obra é coerente com os traços de obscenidade que se foram afirmando, insistentes, na prosa hilstiana, depois do inaugural Fluxo-floema. A este seguiu-se a publicação, em 1977, de Ficções, uma coletânea que agregava ao primeiro livro os textos de Pequenos discursos. E um grande e uma narrativa de 1973, Quadós, depois rebatizada como Kadosh, por determinação da própria Hilda, como nos relata Alcir Pécora, coordenador da publicação da obra completa pela Globo. Temos agora nova editora, a obra completa em prosa reunida num único volume pela Cia das Letras, depois de ter lançado a poesia completa em 2017. São passos da consagração póstuma.
Depois de Ficções, a desagregação do narrar, de extração beckettiana, vai adquirindo pelas mãos de Hilda o que se pode talvez denominar uma ;erótica do relaxo; que, no limite, se transmuda no ;escracho; de sua face pornô, como assinalou Eliane Robert Moraes. Um texto como A obscena Sra. D fornece possível chave para essa conversão. A desagregação do sujeito (o eu) é na verdade desagregação do feminino. Mulher: amante, mãe desnaturada, velha repelida. Do relaxo ao escracho, eis os dois lados do trabalho de prosadora de Hilda Hilst na fase dos anos 90. Ao leitor e à leitora, cabe encontrar seus fundamentos filosóficos. (IM)
Ítalo Moriconi é professor de literatura da UERJ. Escreveu perfil de Ana Cristina César e organizou antologia de Torquato Neto.