Leonardo Cavalcanti
postado em 02/08/2018 07:30
As teclas levantam os martelos, que batem nas cordas, que produzem uma ;pancada;. O piano mais parece uma extensão das mãos de Amaro Freitas, 26 anos, a revelação da música instrumental brasileira, que, pela primeira vez, poderá ser visto e ouvido neste sábado, durante o Festival Jazz Cerrado, na área externa do Centro Cultural da Caixa.
O pacto entre homem e instrumento foi firmado há 15 anos, quando, na adolescência, Amaro trocou a bateria pelo piano durante ensaios em uma igreja evangélica de Nova Descoberta, bairro pobre da periferia do Recife. Ouvir o pianista é perceber de imediato um artista virtuoso, que transformou a vida, capaz de inspirar um sem-número de músicos, de experientes a novatos. Amaro é consciente de cada etapa do trabalho: estudo, criação, estúdio, produção e palco. E assim se tornou referência para outros instrumentistas, provando que é possível viver da música autoral, sem estar por trás de um cantor consagrado.
Público
O Jazz Cerrado começa amanhã. Vai até domingo. No sábado, a noite de Amaro é também de Carlos Malta, Robertinho Silva e João Bosco. ;Fazia um tempo que queria tocar em Brasília, vai ser uma ótima oportunidade de conhecer a cidade, sentir o público exigente daí e trocar experiências com os instrumentistas brasilienses;, disse ele, em entrevista ao Correio na quinta-feira da semana passada, por telefone.
Foi a segunda conversa de Amaro com o jornal. A primeira ocorreu em dezembro de 2016, um mês depois do lançamento de Sangue negro, o álbum que abriu as portas do mundo para o pianista. Em menos de dois anos, Amaro virou a vida pelo avesso. O disco ; produzido com as economias de apresentações em uma pizzaria na região metropolitana do Recife ; foi saudado pela imprensa especializada, brasileira e internacional.
De lá para cá, tocou no icônico Blue Note, no Rio de Janeiro, pubs e casas de jazz em São Paulo e em mais de 50 cidades do país. Gravou uma faixa, Lua candeia, do recém-lançado disco do compositor pernambucano Lenine. Na música, Amaro executa todas as células rítmicas de uma ciranda (ritmo que acompanha danças no litoral pernambucano), dos sons percussivos mais graves aos mais agudos, como se o piano se transformasse em bumbos, caixas e agbés. É a tal da pancada.
O repertório do show de Brasília terá músicas de Sangue negro e do próximo disco, ainda sem título, que será lançado a partir de 19 de outubro na Europa. Amaro, o baixista Jean Elton e o baterista Hugo Medeiros, que gravaram pelo selo Faraut Recordings, farão turnê em Portugal, Espanha, Suíça, Inglaterra e França. ;Vamos antecipar um pouco do que faremos no próximo disco;, afirmou Amaro, ao revelar que a base do álbum tem ritmos pernambucanos, como baião, frevo, o coco de trupé ; tocado com tamanco de madeira ; e variações da ciranda.
Sangue negro apresentava referências de composições de Capiba, por exemplo. Uma das faixas, Subindo o morro, é um frevo desacelerado, comparável às belas composições do maestro pernambucano. Mas é verdade que as lembranças de Charles Mingus, Keith Jarret e João Donato, Thelonious Monk, John Coltrane e Gonzalo Rubalcaba são evidentes. O produtor na época foi o gaúcho Rafael Vernet, parceiro de palco e estúdio de Paulinho da Viola, Hermeto Pascoal e Wilson das Neves. Foi Vernet que, na época, perguntou a Amaro sobre a necessidade de ser agressivo o tempo todo. E, a partir daí, a pancada assumiu influências mais suaves de Brad Mehldau e Herbie Hancock.
No novo álbum, Amaro assumiu a tarefa da produção, numa espécie de grande teste de autonomia e ousadia, mas consciente das próprias possibilidades. ;A banda é a mesma, com Jean e Hugo, o som acabou mais voltado para as experiências desses dois últimos anos;, disse o pianista, que não pode ser comparado a um virtuose do instrumento simplesmente, posta a qualidade das composições. A pancada sonora vai começar de novo. Prepare-se.