Sylvio Back*
Houve época quando se afirmava que, no mínimo, só depois de cinquenta anos, vencido seu inevitável corolário, o esquecimento, seria possível julgar a permanência de uma obra de arte. Então, como fica se o próprio autor é contemporâneo da efeméride e testemunha essa permanência, hein? Sim, trata-se de uma pergunta ainda que pertinente, com resposta em suspenso.
É que, prazeirosamente, integro a plêiade de cineastas longevos do cinema brasileiro, algo jamais vivenciado por outras gerações, e hoje, iguaria etária de uma trintena de realizadores com oitenta anos ou chegando lá, em plena atividade. Como eles, também confesso sentir certa estranheza atestar que Lance maior (1968), cujas filmagens em Curitiba (PR) parece que foram ontem, completa meio século de ininterrupta exibição nos mais diversos suportes e, justamente, sendo homenageado no Festival de Brasília onde no mesmo ano das filmagens teve seu lançamento nacional. Ou seja, graças às novas tecnologias de restauro de negativos 35mm (imagem/som) e sua replicação em outras mídias, o filme nunca saiu de cartaz!
Tanto quanto seu imaginário que retorna mais nítido do que nunca, inclusive, revocando a triste lembrança do encantamento, ano passado, da bela e grande atriz, Irene Stefânia (prêmio de melhor atriz no evento em tela), que divide com Reginaldo Faria e Regina Duarte, então estreando no cinema, o trio de amantes que, como se ouve no trailer, "enreda-se num diabólico jogo de paixão e aventura".
Ousaria dizer que quase tudo é inédito e único em Lance maior: a capital paranaense pela primeira vez personagem de um longa-metragem com repique nacional; eu inaugurando-me na direção sem antes ter sido assistente de nenhum cineasta;
enquanto passeatas no centro de Curitiba se solidarizavam com o emblemático Maio de 68, eu filmava mordendo meu sonho para sempre; execrado por engajar ao elenco conhecida atriz de TV quando o cinema virava as costas pra telinha; ainda que como crítico de cinema incensasse o Cinema Novo, como realizador não me alinhei a nenhum estilo cinematográfico daquela quadra, justamente, por investir tanto numa estética que eu diria "torta" em face de seu tônus autodidata, e numa pegada existencial alheia ao espectro político em voga; talvez por isso tenha gerado um filme profético pelo seu caráter desideologizado, cuja empatia junto ao público reverbera um frescor de atualidade narrativa e anedótica nunca mais reprisado no meu cinema.
Daí a significativa importância de Lance maior agora, com seu cinquentenário celebrado neste 51;, Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (14-23/09), retornar ao seu ninho primal, porque inesquecível sua exibição em 1968 com o Cine Brasília lotado a não poder mais, além de meu festival in pectore, é o mais pop dos certames nacionais, sem dúvida!
Certo, passaram-se décadas, e como doeram, diria o poeta, mas Lance maior, ainda recentemente exibido em cinco capitais por conta dos festejos alusivos aos meus oitenta anos, como tantos longas-metragens, anteriores e posteriores que, ao cravarem o espírito de seu tempo, continuam atravessando inoxidáveis a pátina do passado como a mais inequívoca vitória sobre a incúria cultural do país.
São fotogramas permeáveis de mistério que recapturam a mesma emoção, os mesmos esgares, as mesmas gargalhadas, os mesmos silêncio e espanto, como se a plateia jamais tivesse saído do cinema numa conjunção holística que, por ser impossível premeditá-la, não é pra qualquer obra e autor! É isso que dá assistir à sobrevida de seu próprio rebento.
*Sylvio Back é cineasta e poeta