Diversão e Arte

'Humilhados e ofendidos' chega ao leitor brasileiro em nova tradução

No livro, Dostoiévski mergulha em reflexões sobre personagens perseguidos e escritores fracassados

Nahima Maciel
postado em 22/09/2018 07:00
' Humilhados e ofendidos' tem traços autobiográficos de Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski havia passado 10 anos no exílio na Sibéria quando escreveu Humilhados e ofendidos. O romance sobre personagens perseguidos e desprezados se passa em São Petersburgo, a mesma cidade na qual Raskolnikov comete o crime contra a velhinha em Crime e castigo e para a qual o príncipe Michikin, de O idiota, retorna após anos de tratamento no exterior, mas em um tempo diferente. É essa cidade, tão importante no cânone da literatura russa, que Dostoiévski busca compreender em Humilhados e ofendidos. O romance, considerado um ponto de passagem e amadurecimento na obra do autor, volta às prateleiras das livrarias brasileiras em tradução direta do russo e ilustrado com gravuras de Oswaldo Goeldi.

Humilhados e ofendidos foi publicado originalmente em 1861, cinco anos antes de Crime e castigo, e traz a história do jovem romancista Ivan Petróvitch. Vinha acompanhado do subtítulo Das memórias de um escritor fracassado e guarda muitas semelhanças com o próprio autor, o que levou a crítica a encarar Petróvitch como um alter ego de Dostoiévski. A tradutora Fátima Bianchi aponta que tudo indica se tratar de uma obra, até certo ponto, autobiográfica. ;Ivan Petróvitch, que se apresenta como um ;escritor fracassado;, é também o autor de Gente pobre. Em alguns aspectos, ele reproduz a própria história da estreia literária de Dostoiévski, que depois de elevado às alturas pela crítica, sofre um revés inesperado, que não recebe uma explicação no romance;, explica.

Além de ter condensado nesse romance elementos apresentados em suas obras anteriores, Dostoiévski também condensou muito material da própria biografia, incluindo as preocupações sociais de seu passado. O livro saiu, primeiro, em formato de folhetins publicados na revista O tempo, dirigida pelo próprio autor. Ele queria recuperar o sucesso de Gente pobre, romance de estreia recebido com entusiasmo pela crítica no período anterior ao exílio. Mas Dostoiévski estava mudado.

Preso em 1849, junto com os amigos do Círculo Petrashevski, sob acusação de conspirar contra o czar Nicolau I, foi condenado à morte antes de receber o perdão do imperador. Passou uma década confinado na fortaleza de São Pedro e São Paulo, na Sibéria. Trabalhos forçados e a proximidade da morte mergulharam o autor em reflexões existencialistas que encontrariam eco em sua literatura. É com esses ecos que o leitor se depara na trajetória de Petróvitch.

Ideologia

No exílio, Dostoiévski passou por uma revisão de suas antigas convicções e, como explica a tradutora Fátima Bianchi, Humilhados e ofendidos é o texto no qual ele dá vazão às ideias que o levariam ao novo ;romance ideológico;. O livro é um ponto de transição entre o passado e o futuro, uma base para o nascimento da obra monumental criada pelo autor, o mais psicológico e existencialista dos escritores russos do século 19.

;Dostoiévski escreve esse romance, que tem lugar em Petersburgo, num momento em que ele ainda estava tentando amadurecer as suas observações sobre a capital, que havia passado por grandes transformações;, explica Fátima. ;A literatura russa também havia continuado a se desenvolver, assim como o próprio Dostoiévski havia passado por uma mudança interior significativa e revisto todos os seus pontos de vista anteriores à prisão. Colocava-se diante dele, portanto, a necessidade de buscar novos meios de representação.;

Ao tentar repetir o sucesso de Gente pobre, o autor retoma muitas situações e personagens representadas no romance de 1846, publicado quando tinha 25 anos. A vida na São Petersburgo de Humilhados e ofendidos também tem mais a ver com a de Gente pobre do que com a cidade encontrada pelo autor após o exílio. É leitura obrigatória para quem não resiste à profunda construção psicológica com a qual o autor russo embala suas histórias e personagens.


Duas perguntas/ Fátima Bianchi

Qual foi o maior desafio dessa tradução?
Acho que traduzir Dostoiévski é sempre um desafio. Como apontou Bakhtin, o romance de Dostoiévski é polifônico, nenhuma voz se sobrepõe às outras, nem mesmo a do autor, e isso acaba se refletindo também no modo de expressão das personagens. Cada uma tem uma linguagem própria, que, em geral, caracteriza a personalidade, o caráter, o meio social. Quer dizer, ele coloca na boca da personagem palavras que são próprias dela, o que estava relacionado à sua própria concepção de verossimilhança. Então, o tradutor precisa ter bem clara a intenção da obra, do autor, para reproduzir adequadamente a linguagem das personagens com todas as suas nuances e estar sempre atento para não uniformizá-la, porque o Dostoiévski tem propósitos claros com isso.

Como o autor explora os sentimentos de seus personagens em profundidade?
Para Dostoiévski, a missão da literatura é anunciar o mistério do homem, da alma humana. Por isso ele coloca a personagem em situações excepcionais, extremas. Dividida por pensamentos inquietantes, ela se vê forçada a tomar decisões que trarão consequências catastróficas para si e para todos os que a cercam, e das quais, cedo ou tarde, inevitavelmente, ela se dará conta. Mas, para ele, é importante que o leitor também sofra junto com a personagem todo o seu calvário de buscas, de dúvidas, de desilusões e de esperanças. E, para envolvê-lo, fazê-lo participar da ação e carregar todo o peso da via crucis da personagem junto com ela, é preciso que a ação tenha lugar no tempo presente, em movimento. O tempo da ação tem de coincidir com o tempo do leitor.

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