Ricardo Daehn
postado em 14/10/2018 07:00
Logo na primeira cena da produção do filme Djon África, recém-lançado na cidade, o protagonista deixa o público inteirado do tema central, com a letra de uma música: ;Toda a gente precisa de origem para ter uma missão;. É justamente atrás da curiosidade pela árvore genealógica ; eternamente renegada ; que Miguel (personagem de Miguel Moreira) chegará à realidade de Cabo Verde, buscando o encontro com o pai, um completo desconhecido. Claro que, no trajeto, vai esbarrar na dureza de um cotidiano embrutecido, também descrito na música de protesto que abre a fita: ;O governo come e bebe até a última gota, e o povo vota ; você dá o corpo ao trabalho para poder receber algum dinheiro...;.
Primeiro longa de ficção assinado pela dupla de portugueses Felipa Reis e João Miller Guerra, Djon África testou algumas certezas do realizador João, entre as quais a de que ;dinheiro, quando aparece, estraga tudo;.
Foi justamente um malabarismo financeiro, que mobilizou equipes brasileiras, portuguesas e cabo-verdianas, o elemento capaz de garantir a boa difusão para o longa feito com atores não profissionais. ;Precisava de pessoas motivadas, numa relação que vai para além de recebimento de dinheiro. Cinema estimula a partilha. Tínhamos quatro linhas de frente filmando em Cabo Verde. Trabalhamos com quem aceitou jornadas sem grandes intervalos de descanso. Tudo possibilitou a grande aventura, inesquecível e coletiva, por quatro meses;, comenta o realizador.
;Em Cabo Verde, a identidade cultural negra é muito forte, ainda que a população viva uma grande diáspora ; quem sai, propaga a cultura, pela Europa. Por meio da música e da língua, os cabo-verdianos seguem firmes;, opina o diretor João Miller Guerra.
Versado em pintura e artes plásticas, ele (ao lado da companheira e correalizadora Felipa Reis), defende com o filme a ;questão universal; centrada na busca de uma vida experimentada na plenitude. Tibars, outro codinome do protagonista de Djon África, no roteiro proposto por Pedro Pinho, explora a vivência da imigração, quando deixa Portugal, em busca de um pai do qual sequer guarda uma imagem.
[FOTO2]
;Acho que a cultura negra, de raiz, se propaga, primeiramente, por meio dos próprios negros. Ela resiste e existe muito vincada nas comunidades. Em Portugal, ela existe muito nos bairros cabo-verdianos, em que já trabalhamos há alguns anos e, no meio dessas comunidades, a gente constata grandes diferenças, a reboque das transformações repassadas pela Europa;, analisa o diretor.
Fronteiras, problemas de ;uma globalização malfeita ou mesmo impossível; espalha, segundo João, questões acima de nacionalismo e de quebras de paradigmas. ;Em Portugal, as comunidades negras mantêm sua raiz viva. Estão nos bairros e continuam nas periferias, longe do centro, e guetizadas. Mas, ainda assim se propagam;, comenta o cineasta.
Djon África baliza um estreitamento de laços entre Portugal e Brasil, por meio de coprodução com a Desvia (produtora de Recife), que tem na cartela produções de peso como os longas Boi neon e Ventos de agosto, criados por Rachel Ellis e Gabriel Mascaro. Exibido no Festival de Cinema de Roterdã (Países Baixos) e premiado pela imprensa especializada no Festival Internacional de Cinema do Uruguai, Djon África obteve boa circulação por países como Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, Suécia e Canadá. A aceitação não reverteu em certeza de êxito, entretanto ; mesmo diante de tantos festejos cercando traços culturais e raciais.
;Indiferente à cor dos protagonistas; distribuir um filme, escoar um filme, é difícil e ponto. Há, cada vez mais, plataformas paralelas ao cinema. Estrear os filmes depois de passados em festivais é bem difícil. Na Europa, e particularmente em Portugal, a coisa está bem, bem difícil. É um orgulho enorme ter um filme como este, mas temos dificuldades de estreia em Portugal, dada as poucas salas de cinema;, conclui.
Injetando verdades
Filmado em centros como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, o documentário A última abolição, dirigido por Alice Gomes e com supervisão do politizado e ativista Jeferson De, examina causas e efeitos da injeção de um contingente de 5,8 milhões de africanos escravizados ao longo de 350 anos de história brasileira. Coproduzido pela Globo Filmes, e com estreia marcada para a próxima quinta-feira, A última abolição teve respaldo de mais de 10 anos de pesquisas realizadas pela consultora Luciana Barreto.
Greves, análises de quilombos, exames do extermínio de jovens negros, a chegada dos navios negreiros e a condição do negro formam o campo de discussão da fita. Representantes da Comissão Nacional Verdade da Escravidão e do Instituto da Mulher Negra figuram como entrevistados, ao lado de professores, sociólogos, filósofos e mestre em direito. De Brasília, a professora Ana Flávia Magalhães Pinto dá o seu depoimento como integrante do Departamento de História da UnB.
Duas perguntas/ Alice Gomes
Quais as questões mais imediatas e que raramente têm acolhimento, na visão de um artista negro?
A construção do imaginário de um povo, de uma nação, se faz com narrativas. Quanto mais diverso for o acesso a histórias com protagonismo negro, feminino ou LGBT, mais diversa e generosa será nossa sociedade. Os meios de produção artísticos acompanham o perfil de privilégios historicamente construídos sendo dominados por homens brancos, colocar na produção os artistas negros, as mulheres e os artistas LGBTs são essenciais para democratizar a construção de uma visão plural. Isso não quer dizer que o artista negro só pode falar de assuntos relacionados ao preconceito racial ou a mulher sobre o machismo, e assim por diante. Todos podemos e devemos falar de todos os assuntos, gerar empatia, se colocar no lugar do outro e estimular o público a também fazer isso. Quando o exercício em lutar pela visão do outro é realmente sincero, todos saímos ganhando.
Que conclusões tirou ao estar no projeto do documentário?
O mito da democracia racial, de que no Brasil não temos preconceito racial, que aqui teríamos uma espécie de ;preconceito social;, ainda vigora em nossa sociedade e isso é muito nocivo para a população negra, dificultando o debate verdadeiro sobre o combate ao preconceito racial. O preconceito racial é estruturante da sociedade brasileira, temos que enxergar nossa sociedade como ela realmente é: excludente, desigual e falsamente cordial. Não basta não sermos racistas, temos que ser anti-racistas e combater o preconceito unidos. A igualdade racial tem de ser uma batalha de todos, brancos e negros. Os negros serão sempre os protagonistas dessa luta, mas juntos seremos sempre mais fortes.