Adriana Izel
postado em 27/10/2018 06:30
Qual é o lugar da tolerância na nossa sociedade hoje? Esse foi o questionamento que o jornalista e dramaturgo Gustavo Pinheiro se fez quando decidiu criar o espetáculo A tropa, obra lançada em 2016 e que rodou o país nos últimos dois anos apresentando a história de uma família que, em um reencontro, traz à tona as mágoas e as lembranças do passado sob um contexto político.
A história da peça surgiu em meio à campanha eleitoral de 2014, em que Dilma Rousseff e Aécio Neves disputavam à Presidência da República. ;Fiquei impressionado com a violência das pessoas nas discussões e nas argumentações, principalmente, nas redes sociais. Vi amigos rompendo por causa da política. E é engraçado que hoje vejo que o segredo do sucesso da peça é que ela captou o ovo da serpente. O que a gente está vendo agora de fake news, toda essa avalanche, essa violência das pessoas, a hostilização nas ruas, é o ovo da serpente e a peça conseguiu captar isso de forma embrionária;, analisa Pinheiro.
Com passagem pelas principais capitais do Brasil, inclusive Brasília, onde esteve em cartaz em julho do ano passado, o espetáculo deixou os palcos há algumas semanas para ganhar as páginas de um livro. A convite da editora Cobogó, especializada em uma coleção voltada à publicação de peças teatrais, Gustavo Pinheiro levou o texto para uma versão impressa, lançada em setembro com o roteiro do espetáculo e uma homenagem a Otavio Augusto, ator que interpreta o personagem principal da trama, o pai que está doente e hospitalizado recebe os quatro filhos, cenário em que se desdobra a história.
;Fiquei superfeliz (com o convite). Desenhamos essa ideia e o interessante é que a peça acabou de sair de cartaz. Fizemos três semanas no Rio de Janeiro. Essa é uma forma de esse texto ficar eternizado;, afirma o autor. A contemporaneidade da história, inclusive, é outro ponto de destaque para a transformação da peça em livro.
Contexto atual
A narrativa acompanha o personagem de Otavio Augusto, um militar que viveu o período da ditadura e acredita essa ter sido a época mais positiva na história do Brasil, enquanto os filhos, Humberto (Alexandre Menezes), Arthur (Eduardo Fernandes), Ernesto (Rafael Morpanini) e João Baptista (Daniel Marano) discordam do patriarca e esse é um dos grandes embates entre essa família, que não se via há muitos anos, e volta a se reencontrar em um quarto de hospital. ;Era para humanizar, para que fosse de fato uma situação familiar que causaria mais constrangimento;, explica.
;Um pouco do segredo do espetáculo é que as falas estão deslocadas. Quem defende o governo de esquerda é o filho empreiteiro. Enquanto quem faz as críticas ao Brasil de hoje é o pai saudoso da ditadura. Seria muito simplório se fosse um discurso óbvio. Tive esse cuidado de manejar as falas para que nada ficasse muito óbvio. Isso causa um constrangimento. Não está um esquerdista nem um direitista padrão. Não tem vilão nem mocinho. Esse é um caminho que o Cesar (Augusto, diretor da peça) explorou muito bem;, defende o escritor.
Ao trazer o contexto político, A tropa demonstra essa divisão na sociedade brasileira por meio do pensamento de cinco personagens que viveram épocas diferentes, tudo em formato ficcional. O objetivo principal da história, tanto nos palcos quanto nos livros, é trazer uma reflexão sobre o respeito às diferenças ; políticas, ideológicas, raciais, religiosas, comportamentais, sexuais ; e como isso está ligado ao convívio saudável entre as pessoas.
;A peça passou pela eleição da Dilma, pelo governo dela, a crise, o impeachment, o governo de Michel Temer até chegarmos a uma nova eleição. Ela foi só ganhando maturidade. Quando escrevi em 2014, não existia a figura de um militar com chance de assumir a República. E o Otavio Augusto faz esse homem, um militar aposentado e saudoso. Foi muito simbólico e, ao mesmo tempo, perturbador;, classifica Gustavo Pinheiro.
Para ele, a peça tem a função de mostrar esse caldeirão. ;Precisamos aceitar as diferenças políticas, econômicas, sociais, religiosas. É nessa intenção que se constrói aquele grupo ali. O importante é que a gente esteja sempre se manifestando. Nós já nos perdemos e agora rachamos mais uma vez. Mas a democracia é um exercício que a gente precisa sempre explorar;, afirma.
Homenagem
Além de trazer o roteiro da peça, a versão em livro de A tropa aproveita para prestar uma homenagem ao protagonista Otavio Augusto. O ator se juntou ao elenco por um desejo do próprio Gustavo Pinheiro, que entrou em contato com Augusto e o convidou. ;Quando pensei no pai só ficava na minha cabeça a figura do Otavio Augusto. Consegui um contato com ele, passaram-se dois dias e ele me ligou de volta dizendo: ;Vamos fazer, esse texto tem que ser falado;. Isso foi em novembro de 2015 e a peça estreou em março de 2016;, lembra.
Homenageado, Otavio Augusto também foi uma forma de celebrar o protagonista. ;Ele fez os maiores clássicos do teatro. É um ator gigante, tanto na televisão quanto no cinema e no teatro. Tem uma história de atuação ligada à esquerda. É um verdadeiro humanista;, afirma Gustavo Pinheiro. Na obra, sete amigos de Otavio Augusto fazem esse tributo ao artista. São eles: as atrizes Ana Lucia Torre, Eliana Giardini, Etty Fraser, Jacqueline Laurence, Susana Vieira e Vera Holtz e os atores Renato Borchi.