Diversão e Arte

Eltânia André faz literatura sobre violência e luta pela liberdade

O livro abre com um conto impactante, intitulado Uma das mil e uma noites, no qual a autora apresenta um recorte aterrador do Brasil atual: a violência contra homossexuais perpetrada por indivíduos de tendência fascista

Geraldo Lima - Especial para o Correio
postado em 27/10/2018 07:00
Escritora Eltânia André

Eltânia André, mineira de Cataguases, estreou na literatura com o livro de contos Meu nome agora é Jaque [Rona Editora, 2007]. Esse livro reúne várias histórias contadas por um único narrador [um contador de causos, podemos dizer assim], Tizé, que, aposentado, passa a se denominar Jaque (;Já que estou aqui no mundo, vou viver plenamente cada dia;). São histórias que se passam no interior e são contadas num tom leve e bem-humorado.

No seu segundo livro, Manhãs adiadas [contos, Dobra Literatura, 2012], a autora dá uma guinada no tom narrativo: as histórias, narradas por vozes diversas, são densas e desvelam o cotidiano de vidas humanas marcadas pela desilusão e pela falta de perspectiva. Assenta-lhes bem o verso do poeta Manuel Bandeira no poema Pneumatórax: ;A vida inteira que poderia ter sido e que não foi;. Agora, em Duelos [contos, Editora Patuá, 2018], Eltânia nos apresenta uma série de histórias em que adensa mais ainda o tom narrativo, expondo com lirismo e, às vezes, com secura, o desencanto da vida contemporânea num Brasil sitiado pela violência e pela mercantilização da vida humana.

O livro já abre com um conto impactante, intitulado Uma das mil e uma noites, no qual a autora apresenta um recorte aterrador do Brasil atual: a violência contra homossexuais perpetrada por indivíduos de tendência fascista. ;Um dos pontapés atingiu o crânio. Outro quebrou uma costela. O chute na cara. Bicha;. É esse espírito de extermínio, que contaminou a alma de parte do nosso povo, solapando o conceito de cordialidade do brasileiro, criado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, que esse conto expõe com crueza. É tão forte e apavorante a cena descrita que, a certa altura, o autor interrompe a sua criação, enojado: ;...o sujeito ia partir para o ato ; eu asfixiado, sem planejamento, retiro os dedos do teclado num átimo de lucidez, tentando estabelecer em que mundo dormitava meu pesadelo; .

O livro abre com um conto impactante, intitulado Uma das mil e uma noites, no qual a autora apresenta um recorte aterrador do Brasil atual: a violência contra homossexuais perpetrada por indivíduos de tendência fascistaPodemos vê-lo, sufocado, premido pela necessidade de mostrar ao mundo essa atrocidade e, ao mesmo tempo, tomado pela sensação de impotência ante o terror: ;Salve a Wanderléa, p...! Resignado, entendo que nunca pude salvar ninguém. Apenas indignar-me. Sinto náuseas. Não me reestabeleço. Os personagens assaltam-me, pedem para que a literatura seja vida e sopre neles o espírito que os moverá;.

A metalinguagem aqui não se apresenta como mero artifício, mas, sim, como meio para expor os limites da criação literária e o papel do escritor diante do horror que nos sitia: ;Estamos sitiados. Peço desculpas àquele poeta que sussurrou pela rede seu apelo por histórias mais líricas, poéticas e ternas ; que também me rodeiam ;, contudo elas hão de esperar, porque o mundo é esse caos obsessivo e possesso ladrando nos quintais;.

Frente à ameaça de perda das liberdades democráticas e da escalada da violência, o escritor brasileiro parece se encontrar de novo diante da questão que Luís Costa Lima tentou responder no seu livro Por que Literatura? (Editora Vozes, 1969). Expondo sempre a importância de se valorizar a questão estética e nos alertando para o risco da simplificação da linguagem em busca de uma comunicação direta, ele escreve num dos ensaios que compõem o livro: ;A tarefa da literatura continuará a ser, agora como antes, a de atingir e a de trazer na palavra a raiz das coisas onde se deposita a raiz do homem; . Imerso nesse dilema e nessa crise, o autor/personagem/narrador do conto de Eltânia se socorre das palavras de Ortega y Gasset [;eu sou eu e minha circunstância;], sabendo que não poderá jamais fechar os olhos para o mundo ao seu redor. ;Ainda há para contar pelo menos outras mil histórias que não recolhi na Pérsia distante de Sherazade;. O como contar essas histórias, sem prejuízo do fator literário, é a questão que se impõe agora, e isso, como podemos ver nos demais contos de Duelos, Eltânia faz com perícia e extrema sensibilidade.

Em pelo menos quatro dos contos de Duelos, Eltânia explora o aspecto experimental da narrativa. São eles: Uma das mil e uma noites, Enquanto lia Faulkner, Matança de passarinhos e Teatro a céu aberto.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

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