Diversão e Arte

HQ traz história sobre refugiados do campo de Calais, na França

Em quadrinhos a autora Kate Evans narra o drama de pessoas que atravessaram mares e terras para fugir de conflitos

Nahima Maciel
postado em 12/11/2018 06:30
Livro 'Refugiados - A última fronteira', de Kate Evans.

Fazer ativismo por meio de quadrinhos pode ser muito eficiente na visão da artista britânica Kate Evans. Autora de uma HQ sobre as mudanças climáticas e outra sobre a vida de Rosa Luxemburgo, ela começou a se interessar pelas narrativas de questões contemporâneas em forma de quadrinhos há 25 anos, ao participar de protestos contra o governo do Reino Unido. Na época, era ativista ambiental e chegou a viver em árvores para combater a construção de estradas. De lá para cá, descobriu o poder dessa linguagem, especialmente quando associa os desenhos a trabalhos de reportagem. Refugiados ; A última fronteira é a produção mais recente de Evans, que chega às livrarias brasileiras pela Darkside.

É o drama de pessoas que fugiram de guerras e perseguições na África e no Oriente Médio que a autora conta no livro. São histórias reais, colhidas ao longo de duas visitas a Calais, no norte da França. A cidade abriga o maior campo de refugiados do país e muitos deles chegaram ali com a esperança de conseguir atravessar o Canal da Mancha e chegar à Inglaterra. No entanto, raramente conseguem o estatus de refugiados. Os governos europeus estão cada vez mais firmes na recusa de asilo para essas pessoas. ;Meu objetivo foi mostrar algo muito simples: que os imigrantes são pessoas. Não são de outra espécie, não são terroristas, não são animais, são vítimas de eventos mundiais que não têm para onde ir;, enfatiza Kate. Para ela, o mais preocupante é o fato de que, todos os anos, milhares de pessoas morrem ao tentar cruzar fronteiras. ;E são linhas imaginárias que nós desenhamos ao redor do planeta. Nós todos vivemos no mesmo planeta;, reflete.

Em quadrinhos a autora Kate Evans narra o drama de pessoas que atravessaram mares e terras para fugir de conflitosRefugiados dá voz a vários personagens inspirados em pessoas reais, com as quais a autora conversou. A reportagem acompanha o dia a dia dos habitantes do campo e dos voluntários empenhados em ajudá-los. A própria Kate é personagem do livro. Aparecer nos quadrinhos, ela acredita, dá credibilidade à história. ;Fica mais preciso se eu me incluo. E é importante, porque não há um narrador confiável e toda história tem vieses, especialmente as que pretendem ser mais objetivas. Criando um personagem de mim mesma como uma tola ingênua e privilegiada, eu posso autorizar o leitor a ser crítico em relação a mim;, diz.

Dificuldades

Conhecido como a selva da Calais, o campo foi alvo de várias ações do governo francês, que tentou fechá-lo e evacuar os imigrantes em 2016. O local já chegou a abrigar mais de 6 mil refugiados e tema constante de polêmica para o governo francês. Para dar uma ideia do contraste entre a situação dos desabrigados e a rejeição enfrentada pela sociedade de forma geral, Kate ilustrou as bordas das páginas do livro com desenhos de rendas. Calais é famosa pela produção desse tipo de tecido. ;Eu gosto de localizar as reportagens com os detalhes obscuros e particulares dos lugares e das pessoas sobre os quais estou escrevendo. A verdade é sempre mais estranha que a ficção. A renda também amarra o título porque minha história é apenas um pedaço, um fio insignificante da enorme tapeçaria que é a imigração, que afeta 68 milhões de pessoas ao redor do mundo;, explica a quadrinista.

No texto, Kate também faz questão de incluir aqueles que consideram as ondas recentes de imigração e a presença de refugiados uma ameaça. ;Incluí as vozes dos trolls e dos haters porque essa visão viciada e de ódio dos refugiados são as opiniões reais das pessoas. Se nós as ignorarmos ou as calarmos, não poderemos lidar com elas com argumentos, não poderemos expor as mentiras;, acredita. Mas a reportagem traz, principalmente, exemplos de solidariedade e experiências pessoais que ajudam a humanizar uma situação cada vez mais banal na contemporaneidade.

TRÊS PERGUNTAS / KATE EVANS

Por que fazer ativismo em quadrinhos?
Eles são um excelente método de comunicação para essas temáticas e para relatar eventos. São fáceis de criar, você só precisa de uma caneta e um papel. E atraem a atenção das pessoas de maneira fácil e engajada. Sempre é bom comunicar o que você quer dizer com humor, sempre que possível, porque se você faz alguém rir, está a meio caminho de mudar a cabeça dessa pessoa.

Na sua opinião, por que quadrinhos têm sido usados nos últimos 15 anos para tratar de questões como refugiados, guerras e opressão?
Quadrinhos são uma maneira incrível de contar a história humana de maneira a preservar a identidade dos protagonistas. Os refugiados em Calais estão tentando chegar ao Reino Unido e, se você fotografá-los ou filmá-los, eles podem ser identificados. O governo do Reino Unido diz que, se estão na França, devem pedir asilo lá. É a maneira como a burocracia em relação aos refugiados funciona na União Europeia. Se você quiser entrevistar um refugiado e contar sua história, tem que esconder seu rosto e disfarçar sua voz. Mas isso não é necessário no caso dos quadrinhos. Você pode mostrar a emoção humana na face de alguém quando desenha e faz isso de maneira a não identificar ou incriminar ninguém.

No Brasil, acabamos de passar por eleições muito polarizadas, e o presidente que venceu condena o ativismo e diz que é preciso acabar com ele. Isso vem numa onda que atinge o mundo todo. Por que, na sua opinião, isso está acontecendo?
Porque a condição material de 99% das pessoas no mundo está se tornando mais empobrecida, enquanto 1% da população do planeta está colocando a nossa riqueza no bolso. E tenho certeza de que isso é sentido com mais força no Brasil, a terceira nação mais desigual do mundo. Já se vão 10 anos da crise financeira de 2008 e as vidas dos trabalhadores está cada vez mais difícil. Isso está acontecendo no mundo inteiro. E nessa situação, as pessoas não vão usar suas vozes democráticas para pedir mais do mesmo. Elas vão votar por uma alternativa e os fascistas oferecem uma alternativa fácil, emotiva. As pessoas acham que, se adotarem o fascismo, suas vidas vão mudar. O que provavelmente vai acontecer, só que não para melhor!

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação