Nahima Maciel
postado em 25/11/2018 07:00
A bailarina Ana Botafogo costuma dizer que quem decide viver de dança no Brasil faz parte de uma resistência. A profissão é bonita, mas as condições para desenvolvê-la no país são bastante complexas. Diretora artística do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, responsável por um corpo de baile formado por 81 bailarinos, Ana passou por um aperto no ano passado. A crise financeira mergulhou o Rio de Janeiro em sérios problemas de caixa e os funcionários do Municipal, servidores públicos concursados, ficaram sem salários. Como os bailarinos não tinham meios para chegar ao teatro, espetáculos foram cancelados e uma parte das atividades, suspensa. Isso porque, no Rio, os bailarinos do Municipal contam com certa estabilidade, o que não é o caso em boa parte das companhias brasileiras.
Por isso, resistência é uma palavra boa para definir a empreitada de viver da dança. Ana esteve em Brasília neste fim de semana para incentivar uma iniciativa que faz parte desse cenário. Ela e Marcelo Misailidis, também bailarino do Municipal, vieram ajudar nos últimos ajustes para a estreia do Balé da Cidade de Brasília, companhia criada por Regina Maura, Noara Beltrami, Monica Berardinelli, Tereza Braga e Wal Moraes em julho último. Ana participou da banca que selecionou os 30 bailarinos da companhia. A estreia traz o espetáculo Carmen para o palco do Teatro Plínio Marcos na noite de hoje.
Neste sábado (24/11), Ana participou de um bate-papo com jovens dançarinos da cidade para falar da vida em uma companhia profissional. O Balé da Cidade foi montado graças a R$ 400 mil de uma emenda parlamentar e os integrantes recebem salário de R$ 1.200. A intenção dos diretores é conseguir patrocínio, nos próximos anos, para manter a companhia. Essa continuidade incerta é uma situação com a qual Ana e Marcelo se deparam com frequência. ;O mais deficiente na dança no Brasil é a constância dos espetáculos;, explica Ana.
A formação de público, a bailarina acredita, não é mais um problema no Brasil. No Rio, é frequente esgotar a lotação de 2.205 lugares da sala. ;O que era necessário era uma política de mais espetáculos;, acredita a bailarina. ;Nós somos uma grande companhia e, hoje em dia, a gente tem feito pequenas temporadas exatamente por falta de recursos. A gente precisa de um investidor maior para que poder fazer espetáculos mais duradouros.; o investimento é um problema cada vez maior.
Marcelo Misailidis lembra que as produções encareceram nos últimos anos e não há bilheteria que dê conta de bancar uma temporada. Quando o investimento vem do setor privado, a tendência é buscar situações de lucro imediato e os empresários preferem fomentar o que tem maior visibilidade. ;As pessoas acabam investindo em Cirque du Soleil, mas eles já têm seu público. Não que não seja importante, mas ele já tem público garantido, como outros eventos têm público garantido;, diz Misailidis. ;Os espetáculos têm encarecido como um todo. Hoje em dia, você vai montar um espetáculo de dança ou teatro tem que colocar som, luz, porcentagem disso e daquilo, do Ecad. Não sobra nada, essa é que é a real.;
As eleições recentes também fizeram surgir dúvidas quanto às possibilidades de financiamentos por meio das leis de incentivo. O presidente eleito Jair Bolsonaro defendeu mudanças na lei, o maior mecanismo de incentivo para a cultura no país. A crença de que as atividades culturais não seriam prioridade diante de segurança, saúde e educação, ideia com a qual lutaram vários ministros da Cultura ao batalhar pelo aumento do menor orçamento da Esplanada, sempre paira no ar. ;Agora vamos ter que avaliar como isso vai ficar no país com a questão da Lei Rouanet e de uma possibilidade concreta de que a arte possa continuar subsistindo;, diz Misailidis. ;A gente sabe que o processo de alteração de qualquer sociedade passa pela educação. Sem educação, as questões atreladas à segurança e à saúde estarão comprometidas. E o processo da educação perpassa o da cultura.;
SERVIÇO
Carmen
Com Balé da Cidade de Brasília. Coreografia: Noara Beltrão, Wal Moraes, Daniel Amaral e Regina Maura.Hoje, às 18h, no Teatro Plínio Marcos (Complexo Cultural da Funarte). Entrada: R$ 40 e R$ 20 (meia)
Três perguntas /Ana Botafogo
Qual o maior desafio que os bailarinos do recém-criado Balé da Cidade vão enfrentar?
Acho que é a entrega para esse trabalho. Porque, como tudo foi feito no meio do ano, muitos têm outros trabalhos. Pode ser que, daqui um pouco eles, precisem se dedicar de corpo e alma a essa companhia para que ela possa cumprir sua missão de espetáculos e levar o nome da cidade para fora como representante cultural de Brasília. O desafio é a constância do trabalho e, cada vez mais, os artistas ficarem conscientes de sua importância no cenário cultural do país.
Onde está o investidor brasileiro? Quem é ele? Ele comparece pouco?
Acho que a crise que vivemos ano passado tirou muito a credibilidade dos investidores de investir em arte, sobretudo no nosso teatro porque os artistas não conseguiam se locomover, então os investidores que estavam habituados ao Theatro Municipal se retraíram. Pouco a pouco, estão assinalando que vão voltar. A grande crise do Estado tirou um pouco nossos investidores. Sempre sou a favor dos investidores privados, particulares, acho que, se todos puderem ajudar a nossa arte a crescer, seja pessoa física ou jurídica, teríamos nossa cultura enriquecida. A posição do Estado é tornar possível, conseguir, talvez, essas leis de incentivo que ajudem as outras empresas, mas precisamos muito focar nas empresas privadas para que possam ajudar a cultura de seu próprio país.
O que você diria a quem diz que há prioridades e que cultura está no fim da fila? Nas eleições, surgiu fortemente essa ideia de que os artistas não precisam de financiamento, se enriquecem às custas do Estado;.
Às vezes, as pessoas falam de um caso específico. Posso falar que nós, os artistas do Municipal, lutamos duramente para ter nossas produções feitas e somos artistas do governo, temos uma situação um pouco diferente, somos contratados ao longo do ano para fazer o que pudermos fazer. Se pudermos fazer 300 espetáculos por ano, não receberemos nada mais do que se fizermos cinco. Quando as pessoas falam que os artistas mamam deve ser em um projeto específico, eu não generalizaria isso para todos os artistas porque não é uma realidade. Os artistas querem dar voz ao seu tempo, a suas artes, e acho que o artista, além de um pouco sonhador, quer poder se manifestar. Essa é nossa missão. Agora, claro que o artista precisa também sobreviver, então para isso ele tem que ter pagamento, não pode ser de graça.