Cinquenta anos depois do lançamento da primeira versão do espetáculo Roda viva, com texto de Chico Buarque, direção de Zé Celso e elenco formado por nomes como Marília Pêra, Zezé Motta, Marieta Severo, Rodrigo Santiago e Antônio Pedro Borges, a peça ganhou uma remontagem, que estreou em 6 de dezembro no Teatro Sesc Pompéia, em São Paulo, e seguirá em cartaz até 10 fevereiro na cidade, com sessões no Teatro Oficina Uzyna Uzona.
A nova versão do clássico, que ganhou algumas adaptações e tem até citações a Donald Trump e Jair Bolsonaro, celebra a marca e ainda os 60 anos do Teatro Oficina. A direção continua a ser de Zé Celso, porém, o elenco é novo e traz, principalmente, jovens artistas. O time é encabeçado por Roderick Himeros, que vive o protagonista, o ídolo Benedito Silva, que faz de tudo para agradar e representa a figura manipulada midiaticamente, além de Guilherme Calzavara, o Anjo da Guarda, e Joana Medeiros, o Capeta, os dois personagens que influenciam Benedito. Marcelo Drummond interpreta Mané, amigo do protagonista, e Camila Mota dá vida à esposa do personagem principal.
O coro, que foi o destaque e uma das revoluções de Roda viva de 1968 ao quebrar a quarta parede, está de volta e é formado por 20 atores, entre eles, quatros nomes que tiveram passagem por Brasília: a atriz trans Marcella Maia, que viveu parte da infância e adolescência na capital, o ator Tulio Starling, que integra o elenco do Oficina oficialmente desde o ano passado e participou ativamente do teatro brasiliense, além de Kael Studart e Clarisse Johansson, artistas também da capital federal.Completam o time Cafira Zoé, Carol Castanho, Cyro Morais, Danielle Rosa, Fernanda Taddei, Isabela Mariotto, Kelly Campello, Lucas Andrade, Marcelo Dalourzi, Mayara Baptista, Nash Laila, Nolram Rocha, Sylvia Prado, Tony Reis, Viviane Clara e Zé Ed.
Cada um dos nomes de Brasília teve uma inserção diferente no espetáculo. Marcella Maia, que estava se destacando no cinema em filmes independentes e até numa pequena participação no hollywoodiano Mulher-Maravilha, entrou quase sem querer na produção. ;O desejo (de fazer parte do elenco) surgiu quando assisti a remontagem de O rei da vela. Então fui à luta por esse espaço e caí de paraquedas. No início dos ensaios de Roda viva , fui convidada para assistir por Tony Reis que, além de amigo, é um grande ator baiano e conhecia o meu trabalho. Mesmo no papel de espectadora sai do teatro em êxtase naquela noite. No segundo dia, estava lá novamente, com o mesmo propósito, o de assistir o ensaio e o desejo de fazer parte do elenco. Foi quando um anjo chamado Nash Laila, grande atriz do teatro e do cinema brasileiro, sussurrou e me puxou para a roda de aquecimento. Participei de todo o ensaio, mesmo não tendo o roteiro em mãos;, lembra, em entrevista ao Correio.
Assim, Marcella Maia se uniu ao coro, no qual também encarna entidades que acrescentam novidade ao espetáculo, como as ;personagens relâmpago; Barbie Fascista, Gladiadora de Jesus e Baca Trans. ;Foi um dos processos mais difíceis e mais libertadores que eu vivenciei até agora. Estava acostumada com processos solos, mas com Roda viva percebi a importância do coro na macropolítica e também a minha contribuição dentro dela, vindo em caravanas, onde consigo me identificar totalmente nessa trama de Chico Buarque;, analisa a atriz, que trabalha pela primeira vez com Zé Celso.
;Trabalhar com Zé é o ápice da formação de qualquer ator. Ele é um Deus do teatro, uma entidade, e tenho enorme admiração e amor pela história dele. Quando ele está dirigindo, ativo minha escuta e nada mais importa. Vale ressaltar que o papel da companhia vai além do Zé Celso, pois naquele terreiro existem grande atores, iluminadores, diretores, poetas, ou seja, é uma equipe de grandes profissionais;, completa.
Reinterpretação do clássico
Integrante do grupo Oficina desde o ano passado, quando se mudou para São Paulo para integrar o elenco de Bacantes, era natural que Tulio Starling fizesse parte de Roda viva, já que emendou trabalhos com a companhia como Macumba antropófaga e O rei da vela. ;Estou na companhia desde o ano passado. Eu estava em um pré-carnaval em São Paulo quando Kael Studart, que já estava no Teatro Oficina, falou que estavam precisando de um ator para Bacantes e que tinha falado ao Zé Celso que eu estava em São Paulo. Ele já havia me assistido em 2016 e tinha ido falar comigo. Fui para o teatro na segunda, remarquei minha passagem, fiz a estreia e só depois entendi que estava me mudando para São Paulo;, lembra.
;Meio que estou aqui nesse fluxo vivo do teatro. O Roda viva foi o próximo projeto do grupo. O teatro não pode ficar muito tempo parado, é um organismo vivo, então estamos com o Roda vida e O rei da vela, o que chamamos de RV1 e RV2;, explica Starling. Em Roda vida, ele também faz parte do coro.
A experiência na peça de Chico Buarque, ele conta, é intensa e muito corporal. ;Estou doando meu corpo, minhas sacações, recebendo e compartilhando, botando para quebrar;, garante. ;O coro dá movimento para a trama. Esse coro é diferente de outras peças, a gente sai muito de cena, troca de roupa e entra contradizendo tudo que disse na outra ação. Uma hora a gente é a roda viva e chama essa felicidade guerreira, depois entra como o coro para representar a família tradicional protestando contra a imoralidade. A gente encarna as contradições que permeiam o personagem central;, acrescenta.
Em relação a remontagem de Zé Celso, ele compartilha as mudanças do diretor na nova versão. ;Foi uma montagem muito pertinente, por causa do texto do Chico (Buarque) e da visão do Zé, que ressignifica e se apropria do texto. Ele reinterpretou a Roda viva e até mudou a música título nessa versão;, revela. Segundo Tulio Starling, Zé Celso decidiu que, na nova versão, o coro não cantaria ;mas eis que chega a roda viva; e sim emendaria ;eis que chega a roda viva;. O motivo é que o diretor acredita que a roda viva representa o movimento. ;Ele interpretou a roda viva como um organismo vivo, como o próprio planeta, que não tem uma moral, um juízo de valor. É um movimento da vida, uma alegria, uma felicidade;, conta.
Outra mudança na montagem é que a peça se inicia com a música Caravanas, de Chico Buarque, que retrata, de certa forma, a imigração, tema bastante atual. A faixa se une a Cordão, outra canção de Chico que não estava na primeira versão. Entre as atualizações do espetáculo, estão menções a personagens atuais e situações da vida cotidiana, como o aplicativo Whatsapp. ;A peça é uma alegria, é leve, é uma grande zoação tragicômica. A arte tem essa brincadeira, se ri muito;, adianta Tulio Starling.