Diversão e Arte

Finalista do prêmio Jabuti Cintia Kriemler estreia novo romance

'Todos os abismos convidam para um mergulho' aborda os desencontros do ser

Ronaldo Cagiano - Especial para o Correio
postado em 05/01/2019 06:30
Cintia Kriemler: o leitor não sai  indiferente desta trama intrigante

Autora de livros de contos e poesia, Cintia Kriemler estreou no romance com uma obra impactante a partir do próprio título: Todos os abismos convidam para um mergulho. Finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura 2018, essa história pungente é, como se insinua, um pulo no escuro profundo e abissal de seus personagens, naquilo em que viver representa sempre a experiência existencial dos limites, o caminhar no fio da lâmina emocional e psicológica, os becos-sem-saída e as fraturas dos relacionamentos.

Enfim, uma narrativa sem meias-palavras, visceralmente ligada aos desencontros e desencantos do ser, cujo gatilho, além da linguagem crua e densamente permeada de espanto e estranhamento, é a própria história de inquietações e desajustes daqueles que parecem destinados a contabilizar passivos em sua trajetória.

Cinthia não doura a pílula nem contorna a realidade ou miséria de seus protagonistas com eufemismos ou o verniz dos rodeios. É um soco no estômago da primeira à última página, mas com a luva de pelica poética, uma dicção que desnuda a brutalidade e as vicissitudes de uma família, sem culminar numa prosa rebarbativa de derrotismos. É a vida que foi possível dentro dos limites e vivências de cada um, com seus dramas, contingências, dilemas, conflitos e confrontos dando as caras, inaugurando a ordem de cada dia.

O leitor não sai indiferente dessa teia intrigante e instigante de ocorrências tormentosas, em cujos cenários íntimos, domésticos ou sociais, cada um vive o seu caos e suas dores, entre infernos, invernos e demônios, muitos difíceis de exorcizar, pois a tragédia vai sendo construída em seus percursos por força das inclinações, condicionamento e heranças, no fluxo devastador dos próprios contextos individuais ou coletivos, numa sequência de instabilidades.

A partir do olhar conturbado da assistente social Beatriz, uma narradora que desata o fio dessa meada num labirinto de recordações e emoções, o livro segue num processo cáustico de evisceração dessas vidas, cortando na pele, (ex)purgando o que há de mais desconfortante no seu quotidiano. Reflete sobre o desgaste da relação conjugal com o ex-marido Bernardo, a depressão da filha, a relação tumultuada com a mãe e o irmão e os apelos de uma sexualidade extremada que funciona como lacuna para seus fracassos e traumas afetivos. A autora trata de questões delicadas mas corriqueiras nesse mundo contemporâneo regido pela virtualidade e pragmatismo e que enfrenta o debate contra todo tipo de escravidão e preconceitos, contra os julgamentos maniqueístas de classe e gênero.

No mesmo diapasão, abordando a convivência com um ambiente de trabalho claustrofóbico, em que o envolvimento com pacientes vítimas de violência, de desajuste social e outras vulnerabilidades, Cíntia dá voz a vários dramas e acaba por eleger o microcosmo família-trabalho como laboratório de suas perplexidades. Esse recurso faculta à sua escrita realizar um diagnóstico, em clave metafórica, do des(a)tino do próprio país, num momento de metamorfoses e escalonamento de valores e de consciência, processos que desaguam no traumático abismo da degeneração.

Carioca que vive em Brasília há várias décadas, Cinthia Kriemler apresenta-nos uma ficção originalíssima e radical em sua estrutura, temática e linguagem e destina ao leitor um panorama tão real quanto desolador da nossa pequenez e finitude, um nocaute que não imobiliza, mas alerta e sacode. Nesse livro fluente de verdade e pulsante de angústia, a autora mantém-se fiel e em plena conexão com aquilo que é essencial e profundo em nossa condição, os embates que nos movem e comovem.

Nesse sentido, sua obra é ressonância do que, sobre a escrita, já haviam sinalizado Cesare Pavese (;A literatura é uma defesa contra as ofensas da vida;) e Paul Auster (;Um escritor só pode ser bom se tiver a honestidade de ir ao fundo, ao céu, ao inferno, doa o que doer;) e que consiste no leitmotiv de toda criação artística, essa que é a única instância da nossa liberdade de ser, expor e questionar.

Ronaldo Cagiano é escritor mineiro-brasiliense, reside em Portugal

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