Mariah Aquino*
postado em 06/01/2019 07:00
Sob os pés, meu corpo inteiro começa com uma clara elucidação sobre o título da obra. A protagonista Lúcia está num cemitério em frente a uma lápide com o próprio nome. Ela é uma sobrevivente histórica de um período ditatorial, moradora de São Paulo, metrópole agora destruída em que a chuva sumiu e o cinza das paredes pintadas pelo governante tirano é predominante.
O novo livro de Marcia Tiburi, apesar de ficcional, apresenta diversas semelhanças com a realidade. Segundo a autora, esses dados de realidade garantem o realismo reflexivo dentro da obra. ;Uma coisa que me afligia em São Paulo era a questão da água, do volume morto. Como cidades e megalópoles sobreviverão caso haja uma catástrofe ecologicamente grave? É escandaloso como autoridades tratam a questão da água.;
Ela relembra também a época em que viveu na cidade: ;Notícias sobre a água começavam a aparecer, mas havia tentativas de abafá-las. As narrativas de quem morava nos bairros mais periféricos eram as mais trágicas, de falta real de água. Eu queria trabalhar muito essa questão, além da questão do lugar também;.
Para a construção da sociedade distópica e da construção de um imaginário desta para as mulheres, Marcia cita a influência da obra da canadense Margaret Atwood, autora de The handmaid;s tale (O conto da aia, em português) e Alias Grace (Vulgo Grace, em tradução livre). ;No Brasil, essa obra vai soar muito menos distópica do que no Japão ou na Inglaterra, considerando as condições de recepção dele;, reflete a autora.
Na trama, Lúcia é surpreendida, durante a visita ao túmulo em que seu verdadeiro nome está inscrito, por uma jovem que observa a mesma lápide. Betina alega ter descoberto que a mãe, desaparecida na época da ditadura, pode estar viva. A protagonista se agarra ao fio de esperança que a jovem representa para relembrar o passado há muito esquecido. ;Betina e João, seu pequeno filho, são imagens da utopia, uma combinação utópica no meio da distopia;, ressalta Marcia.
A protagonista foi construída sob o pretexto de ser a pessoa mais normal possível. ;Ela é uma figura comum, aceitou uma condição secundária e suportou tudo isso. Ao mesmo tempo, na condição de pessoa simples, foi ela quem se tornou testemunha da história;, Marcia explica sobre a protagonista. ;Ela teve a própria biografia roubada, como tantas pessoas durante o período da ditadura militar também tiveram;.
Um dos pontos centrais desenvolvidos durante a história do livro, estruturado em narrativa linear com começo, meio e fim bem definidos, é a presença da mulher dupla, manifestada nas dualidades entre a protagonista e a irmã. Enquanto uma é luz, digna de receber amor e respeito, a outra se acostuma às sombras e à subordinação, questão às vezes presente na formação subjetiva da mulher, como define a autora. ;Existem mulheres nesta condição sem se questionar. É a relação entre a mulher e a autoanulação. Com isso, quis provocar um pouco mais as mulheres em relação à sororidade;.
* Estagiária sob a supervisão de Severino Francisco
SERVIÇO
Sob os pés, meu corpo inteiro
Marcia Tiburi; Grupo Editorial Record.; 182 páginas. R$ 34,90.