Irlam Rocha Lima
postado em 07/02/2019 06:30
Em 1975, O Brasil vivia sob a égide da ditadura militar. À época, o musical Gota d;Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, levava para o palco do Teatro Teresa Rachel, em Copacabana, no Rio de Janeiro, o embate entre opressores e oprimidos, no qual Bibi Ferreira e Roberto Bonfim, davam vida aos personagens centrais Joana e Jasão.
Transposta para a realidade de um conjunto habitacional do subúrbio carioca, Medeia, a tragédia grega de Eurípedes, teve imensa repercussão. A peça ficou em cartaz durante vários meses e tornou-se um clássico da dramaturgia nacional. Mais de quatro décadas depois, a história ; atualíssima ; volta a ser contada, em uma adaptação do diretor Rafael Gomes, sob o título Gota d;Água (A seco).
Depois de cumprir longa temporada no Rio, o espetáculo, protagonizado pela atriz e cantora Laila Garin e pelo ator Alejandro Claveaux, acompanhados por banda de cinco músicos, deu início a uma turnê que chega a Brasília, neste fim de semana, para ser apresentado de amanhã a domingo, no Teatro Unip, na 913 Sul.
Rafael Gomes explica que a ;secagem; para dois personagens foi sempre o princípio norteador da nova montagem. ;Houve dificuldades intrínsecas e óbvias ao se reduzir dezenas de personagens para a presença e o discurso de apenas dois. A partir do encontro com Laila, idealizadora e coprodutora da montagem, fizemos algumas leituras para encontrar a dupla ideal, e Alexandro Claveaux foi o escolhido nesse processo;.
Ator formado em teatro pelo PUC-GO, inicialmente Claveaux integrou o Grupo de Teatro Guará, em Goiânia, com passagem pelo circo. ;Sempre trabalhei com teatro físico. Mais tarde, no Rio de Janeiro, em Clandestinos, espetáculo e série de João Falcão, interpretei um macaco, fruto de pesquisa de um ano e meio na sala de ensaio e no zoológico;.
Claveaux diz que é muito prazeroso trabalhar com Laila. ;Primeiro, porque é a atriz que mais admiro na atualidade e, segundo, porque é maravilhoso estar com ela em cena. Temos uma conexão muito forte e nossos corpos dialogam de forma muito bonita. Somos só nos dois no palco e temos uma cumplicidade absurda, banhada em poesia e música;, destaca.
Ele conta que, antes de fazer Gota d;Água (A Seco) já amava a peça. ;Li o texto original algumas vezes, assisti à montagem de João Fonseca em 2007 e tinha o disco da Bibi Ferreira cantando as músicas. Infelizmente, as condições políticas em que o nosso país se encontra deixou o espetáculo ainda mais urgente e vivo;.
Laila esteve em Brasília algumas vezes. Em 1998, veio com a peça Medeia, encenada no Centro Cultural Banco do Brasil. Voltaria em entre 2005 e 2008, com montagens da Casa Laboratório, no mesmo local. Integrante do elenco de Gonzagão ; A Lenda, ocupou o palco do Teatro da Caixa. Já em 2012, encantou a plateia que lotou o auditório master do Centro de Convenções Ulisses Guimarães para assistir Elis - A Musical.
MEMÓRIA
Eploração
Chico Buarque e Paulo Pontes começaram a trabalhar o texto original de Gota d;Água a partir de uma transposição que Oduvaldo Vianna Filho (1936/1974) havia feito para a televisão. A feiticeira Medeia virou Joana, moradora do conjunto habitacional Vila do Meio-Dia, mãe de dois filhos, frutos do casamento com Jasão, alguns anos mais novo do que ela.
Compositor popular, Jasão é cooptado pelo empresário Creonte, que o ajudou a fazer sucesso. Ele termina por largar Joana para se casar com a filha do milionário. A trama passional ; que culmina com a vingança de Joana ; tem como pano de fundo as injustiças sociais, pelos quais os moradores do local passam ; vítimas da exploração do todo-poderoso Creonte.
ENTREVISTA: Laila Garin
O ofício de atriz e cantora que vem desenvolvendo desde o início de sua trajetória em Salvador, lhe deu suporte necessário para dar vida a Joana em Gota d;água (A seco)?
Com certeza. acredito que tudo que estudei sobre a tragédia, a trajetória do herói na faculdade me ajudou, já que Gota d;agua é uma adaptação de Medeia. Cheguei a fazer Joana na faculdade em Salvador. Fora isto, o teatro baiano sempre tem a música muito presente nas dramaturgias, mesmo de peça de teatro fora do gênero dito musical. A pesquisa que desenvolvi junto aos atores da Casa Laboratório, companhia de São Paulo dirigida por Cacá Carvalho, e pela Fondazione Pontedera da Itália, também me dão muito suporte. Durante anos, trabalhamos sobre a ação do ator cantando, do valor do texto e da dramaturgia do canto. E para completar tudo isto, o meu encontro com João Falcão no Rio de Janeiro também contribui para isso. Com João, aprendi um pouco a encontrar o drama, o conflito, o teatro no cerne das letras da música popular brasileira que já existem. As músicas de Chico Buarque são ricas de situações e dramas humanos.
Depois de brilhar representando Elis Regina no espetáculo Elis ; O Musical, como foi assumir o protagonismo nessa nova versão da peça de Chico Buarque e Paulo Pontes?
Acredito que foi o passo necessário fazer Gota d;Água, depois de Elis. Após dar vida a uma cantora tão conhecida e amada, de quem as pessoas têm muitas referências, foi muito importante realizar um projeto também meu. Um desejo antigo, do qual eu também fui proponente e com a minha cara lavada, meus traços, meus cabelos. Além de ser um texto muito rico na forma, com suas métricas e rimas, e rico em poesia, é um aprofundamento no drama humano e na linguagem do teatro.
Já conhecia o trabalho de Alejandro Claveaux, antes de ;duelar; com ele nesse musical?
Conheci Alejandro em Clandestinos um projeto de teatro de João Falcão, que foi para tevê. Fiquei abismada com a capacidade dele de se transformar. Na preparação do Gota d;Água percebemos muita sintonia entre nós.
As canções de Chico presentes no roteiro de Gota d;Água já eram do seu conhecimento?
Sim. Participei um pouco junto ao Rafael Gomes desta seleção musical. Eu já conhecia bastante a obra de Chico Buarque, que considero um dos formadores da artista que sou. Sempre me nutri dos versos de Chico.
Interpretá-las dentro do contexto da peça lhe trouxe algum tipo de dificuldade?
Eu acho que são mais descobertas que dificuldades. O contexto de cada cena e de cada personagem faz os versos da música se ressignificarem. Assim como o contexto de nossa realidade extrema também. O momento do Brasil em que cada representação foi realizada também faz as músicas ganharem nossos sentidos. O bom é estar aberto a estes significados novos e mergulhar.
Você chegou a assistir ; em vídeo, óbvio ; a atuação de Bibi Ferreira na montagem original de Gota d;Água?
Claro! Adolescente ouvia muito as gravações dela, vi todos os vídeos. Bibi é minha inspiração.
Além de representar e cantar nesse trabalho, você tem uma movimentação intensa em cena, que lhe exige agilidade. Precisou de muitos ensaios para isso?
Naturalmente, fomos criando esta partitura e com os ensaios intensivos, acabou sendo uma preparação natural. Quando paramos de fazer a peça e retomamos, percebemos que é bastante puxada fisicamente e levamos um tempo pra retomar o ritmo. Mas o corpo tem memória e logo volta. É orgânico porque fomos nós que criamos a partir de improvisos e propostas do diretor Rafael Gomes e do diretor demovimento Fabrício Licursi.
O embate entre opressores e oprimidos é o tema central da peça. Como vê essa questão nos tempos de agora, no país?
Isto sempre será atual. O ser humano é um explorador e tem na sua essência o ;querer se dar bem; e ter privilégios em detrimento dos mais fracos. Mas também tem compaixão, solidariedade, empatia e necessidade de pertencimento. Jasão representa os que fazem aliança com qualquer um para se dar bem, enquanto Joana representa os que lutam até o fim para defender os seus semelhantes e as minorias. Ela não faz concessão com o que acha injusto, mas também representa a parte traída, abandonada, a vingança e a que não conseguiu transcender;e Jasão, o livre arbítrio e a ambição. São discussões éticas.Temos todos, Jasão e Joana, em nós.