Nahima Maciel
postado em 10/02/2019 07:15
A entrada da obra de Monteiro Lobato em domínio público vai agitar o mercado até o fim de 2019. Passaram-se 70 anos da morte do escritor, ocorrida em julho de 1948 e, pela lei brasileira, tudo que foi produzido pelo criador de Dona Benta e Tia Nastácia pode agora ser publicado por qualquer editora sem necessidade de pagamento de direitos autorais. Livre do compromisso financeiro com os herdeiros, quatro editoras, além da Globo livros, detentora dos direitos até o ano passado, estão com edições renovadas e fresquinhas saindo do prelo. Pesquisadora especialista no autor e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo), Marisa Lajolo acredita que a enxurrada de publicações é boa para a obra. ;Vai haver uma concorrência entre diferentes editoras e, com isso, talvez haja livros mais baratos. É acesso ao leitor. Acho que vai se ler bem mais Lobato agora;, diz.
O projeto mais ambicioso vem da FDT, que lança seis coleções dedicadas a Lobato. Para organizar o enorme volume de livros ; só na seara do livro infantil, a produção do escritor ultrapassa 39 títulos ;, os editores Isabel Coelho e Estevão Azevedo reuniram um time de especialistas, escritores e ilustradores. A equipe trabalha no projeto desde 2017 e os primeiros exemplares já estão disponíveis para venda em livrarias e no site da editora. Além dos clássicos, reunidos na coleção Maravilhas de Lobato, e da coleção Reinações de Narizinho, com os 11 livros sobre as aventuras da menina, a editora preparou também as coleções Lobato em cena e Meu primeiro Lobato.
A primeira apresenta textos em prosa e em versão para teatro. Na segunda, o foco está nos leitores iniciantes, os menorzinhos, novatos na experiência da leitura. Trechos extraídos dos clássicos e adaptados formam esse conjunto. Haverá ainda uma coleção dedicada aos contos para adultos.
;A importância do Lobato em termos nacionais é absolutamente inquestionável. A revolução que ele causou no estilo da narrativa e no modelo de comercialização e na criação desse universo fantástico é um dos marcos da nossa literatura;, explica Isabel. ;Ele também foi uma figura importante para o desenvolvimento editorial, para o mercado editorial, para a maneira de fazer livros, de comercializar.;
Feições conhecidas
No estúdio de Maurício de Sousa, Monteiro Lobato não saía das telas dos computadores até o fim do ano passado. Parte da equipe de ilustradores do quadrinista estava debruçada sobre Narizinho arrebitado, um sonho antigo de Mauricio. No livro, os personagens do sítio do Picapau Amarelo assumem as feições de Mônica e companhia. O texto é uma adaptação de Regina Zilberman a partir de Reinações de Narizinho.
Mauricio de Sousa está feliz da vida com o resultado. O quadrinista sempre foi fã do escritor, que lia compulsivamente, mas recusou um convite para ilustrar uma edição de livros de Lobato no fim dos anos 1990. ;Eu amava tanto o que ele escrevia, a forma, o estilo e até o humor que achei que não tinha o direito de fazer isso, de mexer numa obra que, para mim, era sagrada. E não aceitei a proposta da editora;, conta. ;Daí mudou minha cabeça, o tempo passou e Lobato entrou em domínio público. Vão vir diversas versões lobatianas, vai ser uma cachoeira, cada uma à maneira de quem estiver fazendo. E aí achei que não existe mais uma aura sagrada, porque vai tudo se misturar.; Narizinho arrebitado é o primeiro de uma coleção que deve gerar frutos nos próximos anos.
Ilustrações
Na Companhia das Letras, a missão de ilustrar Reinações de Narizinho ficou com Lole e a organização, com Marisa Lajolo. Lobato publicou as aventuras da garota em 11 volumes separados e, em 1931, juntou tudo em um único livro. A versão da Companhia das Letras retoma a maneira como o autor organizou e publicou o volume único. Para os trechos polêmicos ; caso dos comentários apontados como racistas e que geraram o questionamento sobre a manutenção do autor nos programas escolares infantis há cerca de 10 anos ;, Marisa encontrou uma solução lúdica.
;Acrescentamos notas de rodapé em que a Emília conversa com a Narizinho sobre as passagens que ela acha que podem ser difíceis de entender ou que são polêmicas. Mas é uma nota de rodapé também ficcional, que é diferente de ser uma nota de rodapé do professor. A gente faz a Emília e a Narizinho discutirem o assunto. É uma forma de atualizar o Lobato com a mesma irreverência com que faz tudo na obra dele. Talvez, a grande lição dele seja a irreverência sobre o certo, o estabelecido, o tradicional;, conta a pesquisadora.
A editora Globo, até então detentora exclusiva dos direitos de publicação de Monteiro Lobato, também retorna ao autor com A reforma da natureza, que sai pelo selo Biblioteca Azul em uma edição de luxo. A chave do tamanho e O picapau amarelo também estão na agenda, atém Peter Pan e Os doze trabalhos de Hércules, programados para a agenda de publicações do Globinho.
Militante e polêmico
Pioneiro na literatura infantil brasileira, inovador na produção editorial e intelectual engajado, Monteiro Lobato é uma das figuras mais polêmicas e estudadas da produção nacional. Em uma época em que boa parte da escrita para crianças se ancorava em modelos europeus e retomava histórias nada brasileiras, ele criou a boneca de pano Emília, o Visconde de Sabugosa, nascido de uma espiga de milho, o menino Pedrinho, espécie de alter ego e garoto da cidade, Dona Benta e Tia Nastácia, a dupla que comanda o sítio do Picapau Amarelo.
São personagens envolvidos em narrativas que dialogam com a cultura brasileira, com seus mitos e lendas, mas também com a modernidade que mudava os rumos do país naquela primeira metade de século 20. Formado em direito e herdeiro de uma fazenda, Lobato foi promotor antes de se tornar escritor de contos publicados no jornal O Estado de S. Paulo, na primeira década do século 20. Foi apenas em 1920, quando já havia criado sua própria editora e se tornara conhecido como crítico em revistas e jornais, que ele criou a menina Lúcia, ou Narizinho, embrião de todo o imaginário do sítio do Picapau Amarelo.
Lobato foi, ainda, muito importante para o mercado editorial. Sabia vender livros e fazia parcerias até com farmácias e alfaiates. ;Na época, ele era editor e descobriu que o Brasil tinha pouquíssimas livrarias. Então, conseguiu nos municípios endereços de lojas. Ele escrevia e dizia olha o senhor vende camisas eu vendo livros;. Ele esgotava edições de 2 mil, 3 mil exemplares que hoje ainda são difíceis de serem vendidas. Ele ensinou o Brasil e produzir livros e vender livros;, conta a pesquisadora Marisa Lajolo.
Política
Engajado e desbocado, não hesitava em incomodar os poderosos. Comprou briga para manter a exploração do petróleo em mãos de empresas nacionais e seus escritos eram tão virulentos que acabou preso pelo Estado Novo por ;desrespeitar; autoridades. Passou três meses na prisão sob ordens de Getúlio Vargas e foi solto graças a um indulto negociado por amigos. O nacionalismo não tinha limites. Nos anos 1940, se aproximou do Partido Comunista depois de se desencantar com a censura.
As posições polêmicas marcam a trajetória do autor. É célebre sua descrição do caipira Jeca Tatu como um preguiçoso inútil, ideia que, mais tarde, depois de se aproximar de intelectuais higienistas, mudaria. ;Ele aprende então que o caipira tinha pilhas de doenças, não era preguiçoso. Aí escreve o Jeca Tatuzinho e pede desculpas ao Jeca;, diz Marisa.
As falas racistas, especialmente em Caçadas de Pedrinho, no qual chama Tia Nastácia de macaca, despertaram o questionamento em relação à legitimidade de Lobato. Para Marisa Lajolo, é preciso contextualizar o texto e lembrar que macaco é uma expressão usada pelo autor em todas as suas obras, para muitos personagens que não são negros. A proximidade com Sociedade Eugênica de São Paulo, da qual era membro, engrossa as críticas.
LIVROS
Narizinho arrebitadoDe Monteiro
Lobato e Mauricio de Sousa. Girassol, 64 páginas.R$ 34,90
Reinações de Narizinho
De Monteiro Lobato. Ilustrações: Lole. Companhia das Letras, 248 páginas. R$ 64,90
O saci
De Monteiro Lobato. FTD, 168 páginas. R$ 48