Diversão e Arte

Idílio e desassossego: Lucília Garcez apresenta novo trabalho literário

Em narrativa lírica, autora narra a angústia de uma personagem à procura do marido desaparecido e, ao mesmo tempo, faz uma homenagem ao mundo dos livros

postado em 15/02/2019 20:02
Lucília Garcez: romance com a razão e a sensibilidade femininas

Mario Helio* - Especial para o Correio

As dezenas de páginas com que se conclui o romance Ulisses, de James Joyce, formam um encadeamento de frases e cenas do pensamento de Molly Bloom. Ficou famoso esse trecho como exemplo da aplicação virtuosa da técnica do monólogo interior, em todo o seu transbordamento. Algo da mentalidade feminina está ali reconstruída, por mais razão que haja tido o médico vienense quanto à dificuldade de saber o que realmente pensa uma mulher.

Esta reflexão pode vir à mente ao ler-se qualquer livro em que a razão e a sensibilidade femininas estejam do começo ao fim da narrativa. É assim que acontece no romance Outono, com que a escritora Lucília Garcez faz sua estreia no gênero. Não se trata de uma comparação ; o seu livro nada tem a ver com Joyce, e se alguém quisesse forçar a aproximação de sua história com o escritor irlandês tentaria encontrar um paralelo melhor no conto Os mortos.

Mas nem aí caberia, pois, por mais que a memória do marido morto esteja onipresente na vida da personagem principal, não é o passado que comanda o seu presente, e sim as suas inquietações pessoais para enfrentar o futuro. Como se sua vida servisse para materializar aquele Caminho de Camilo Pessanha:

"Tenho sonhos cruéis; n;alma doente

Sinto um vago receio prematuro.

Vou a medo na aresta do futuro,

Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro

Do peito afugentar bem rudemente,

Devendo, ao desmaiar sobre o poente,

Cobrir-me o coração dum véu escuro...

Porque a dor, esta falta de harmonia,

Toda a luz desgrenhada que alumia

As almas doidamente, o céu d;agora,

Sem ela o coração é quase nada:

Um sol onde expirasse a madrugada,

Porque é só madrugada quando chora"



Justamente as madrugadas e o choro chamam a atenção em várias das passagens de Outono. Conciliar o sono e os sonhos é um desafio para quem luta para reconciliar-se com a realidade e consigo. A realidade, no caso de Ângela, a personagem, é mais do que a da tal ;falta que ama;, a que se refere Drummond, e mais a da ;vida inteira que podia ter sido e não foi;, do doloroso verso autobiográfico de Manuel Bandeira.

;Seria Ângela uma espécie de Penélope urbana? De uma certa maneira, sim. Mas, convém sublinhar que, na sua espera, tece junto às suas próprias memórias as do seu país. Memórias de uma história. A sua. A do Brasil;

Certeza da morte

Ângela é casada com Danilo. Depois que este é preso e não volta mais para casa, ela passa, a princípio, a nutrir a esperança do seu regresso. Como na canção da MPB: ;Se eu demorar uns meses/ Convém, às vezes, você sofrer/ Mas depois de um ano eu não vindo/ Ponha a roupa de domingo/ E pode me esquecer se eu;. Não é isto, no entanto, que faz a mulher, quando, depois de negar mil vezes, conforma-se com a horrorosa certeza de que o marido foi morto e torturado por militares, um dos tantos da grande lista dos desaparecidos por atos do regime civil-militar que golpeou o Brasil em 1964.

Ela passa a viver em permanente autotortura por causa de sua perda e de toda uma vida não vivida pelo seu amado. A sublimação, por fim, acontece, de duas maneiras: o nascimento da sua filha única, Vitória. Ela é a herança e a presença do pai, Danilo. A superação, porém, consolida-se de vez quando conhece Francisco, o dono de uma pequena livraria, que é, pelo menos em uma década, mais jovem do que ela.

Seria Ângela uma espécie de Penélope urbana? De uma certa maneira, sim. Mas, convém sublinhar que, na sua espera, tece junto às suas próprias memórias as do seu país. Memórias de uma história. A sua. A do Brasil. Não que uma espelhe exatamente a outra, mas porque ambas são feitas de pequenos nadas falhados; corações, mentes e corpos sofridos. Nada há de épico em Outono. Nem propriamente de trágico, embora haja uma tragédia no negativo da foto: a vida inteira que podia ter sido e não foi. Sob a voz de Álvaro de Campos foi que perguntou o poeta Fernando Pessoa:

;Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?

Será essa, se alguém a escrever,

A verdadeira história da humanidade.;

Ela, no entanto, insiste em falar e fazer falar as flores, não só porque ;acredita nas flores vencendo o canhão;, mas porque essa é a sua vida. Ela, própria, ela mesma, é também uma flor ; ;somos flores;, disse Molly sobre o feminino.

Narrativa lírica

Outono é uma narrativa lírica, ou, de modo mais exato, um idílio, usada esta palavra com um sentido bem diverso do original, ou quase oposto. A ênfase no ;quase; cabe, pois a ;filiação; da narrativa ao idílio se encontra em certos simbolismos sutilmente postos nesse romance. A profissão da protagonista é o paisagismo. É um mundo feito de verde e de renascimentos o seu, ainda que a sua realidade mais bruta seja a da canção Pra não dizer que não falei das flores.

Ela, no entanto, insiste em falar e fazer falar as flores, não só porque ;acredita nas flores vencendo o canhão;, mas porque essa é a sua vida. Ela, própria, ela mesma, é também uma flor ; ;somos flores;, disse Molly sobre o feminino. Tem uma filha que é historiadora, porque filha da história. Se um jardim é uma forma de paraíso, não o é menos uma livraria (a acreditar-se em Borges, que afirmou isto a propósito de uma biblioteca).

Se Vitória é a vitória de uma vida (a que podia ter sido e a que realmente foi), Francisco tem o mesmo nome do santo que predicava e vivia em harmonia com os animais, as plantas e a natureza em geral. Quanto a Danilo o seu significado sintetiza bem a vida do personagem: ;o Senhor é meu juiz;. Ainda que o Senhor, no seu caso, não seja o deus dos judeus nem qualquer outro tipo de deus, mas o da sua fé na humanidade.

A mesma fé reaparece, como vitória, na sua única filha. Ao escrever essa filha Lucília Garcez fez com que revivesse Danilo como uma permanência, arquétipo talvez de todos os desaparecidos políticos no Brasil, e com isto compôs a verdadeira história do seu humanismo, de sua humanidade, antonomásia de quantos e quantos lutaram por um país mais justo e mais humano.

Quanto a Francisco, há algo mais a dizer, além de associá-lo ao santo. Por sinal, é curioso que numa história que trata de uma terrível história os nomes de batismos dos personagens sejam de um modo ou de outro remetam a um simbolismo muito positivo e religioso até: Ângela (um anjo, ainda que se saiba desde Rilke que todo anjo é terrível), Vitória, Danilo, Francisco, e sem esquecer da personagem secundária, Paula, que é o feminino do nome do fundador do Cristianismo e cujo significado remete à humildade.

;Narrado com simplicidade e clareza, e sem lançar mão de nenhum tipo de rebuscamento literário, Outono é, sobretudo, uma homenagem à literatura, ao mundo dos livros. Seja na figura de Francisco e Ângela, seja na da livraria dele;.

Movimento de evasão

Nos últimos parágrafos de Outono tem-se no seu movimento de evasão o significado pleno do nome Francisco: "franco", "livre". Mesmo os que quiserem associá-lo mais simplesmente ao "francês" encontrarão numa das passagens do romance uma menção a uma viagem à França - especificamente à casa do pintor Monet - um exemplo de Locus amoenus.

Claro que, nesse caso, reflete o desejo da paisagista encontrar-se num "voo" ao lugar idílico do pintor impressionista e cujas pinturas da natureza e ao ar livre são tão famosas. Outono tem, sob alguns aspectos, um caráter também impressionista e expressionista. O idílio habita o desassossego ; e vice-versa.

O que é, em resumo, Outono? Um romance histórico? O mais acertado seria dizer que o seu tema parte da história, à vol d;oiseau, como também à vol d;oiseau é contada cada vida dos personagens. Não há aprofundamentos psicológicos ou narrativos, e o que a romancista apresenta é um percurso quase sem conflitos, exceto no momento da tortura de Danilo, mas, mesmo assim, narrado, a partir de um esquema um tanto quanto convencional de carrasco/vítima, ativo/passivo. Há também o momento em que a filha se opõe ao namoro da mãe com um homem mais novo, mas pouco dura esse conflito, e o idílio mais uma vez vence o desassossego.

Narrado com simplicidade e clareza, e sem lançar mão de nenhum tipo de rebuscamento literário, Outono é, sobretudo, uma homenagem à literatura, ao mundo dos livros. Seja na figura de Francisco e Ângela, seja na da livraria dele (e que não tardará a ser dela), nas menções a escritores brasileiros e estrangeiros. Homenagem também aos que lutaram contra a ditadura no Brasil, e, de modo específico, os desaparecidos políticos.

;Se no amplo simbolismo das hortênsias mencionam-se a coragem, a determinação e a honra, tudo isto se reflete na vida de Ângela da primeira à última frase do livro da sua vida, entre flores, entre livros e pessoas;.

Época das hortênsias

Neste ponto, há uma coincidência (ou intencionalidade): Ângela termina por remeter, ainda que não de modo direto, a Zuleika Angel Jones, a costureira, a estilista cuja busca pelo corpo do filho desaparecido inspirou a conhecida canção de Miltinho e Chico Buarque de Holanda. E também um filme, Zuzu Angel (de 2006). Além do nome, o ponto de aproximação é, por assim dizer, que suas profissões estejam no campo da elegância: uma no paisagismo (a personagem do romance), a outra na moda (a personagem real). Igualmente a busca de um corpo, a vivência de um luto e a expiação de uma dor que não se conclui: a paisagista busca o marido, a estilista buscou o filho.

Por fim, duas ou três palavras sobre o título do romance e seu significado. Há um inteligente jogo entre a vida da personagem central, Ângela, e a história do Brasil. Ela tem presente a primavera com Danilo enquanto vive o seu próprio outono ; outono que, por sinal, espelha a estação em que ocorreu o golpe que resultou na ditatura militar que perdurou de 1964 a 1985.

Outono começa com a frase ;é época das hortênsias;, e termina com ;era uma tarde quente de verão, mas eu comecei a sentir frio;. Seja pela epígrafe, seja no desdobrar de sua cronologia de interesse histórico-didático, o livro é mais um romance sobre um romance ; um idílio em tempos de desespero e desassossego ; do que propriamente uma narrativa calcada em profundas elaborações literárias. O seu objetivo parece claro: fazer sentir, fazer pensar, promover uma empatia lírica com o seu leitor, a partir da história/memória de uma mulher que reflete sobre as páginas infelizes da memória/história do seu país.

Se no amplo simbolismo das hortênsias mencionam-se a coragem, a determinação e a honra, tudo isto se reflete na vida de Ângela da primeira à última frase do livro da sua vida, entre flores, entre livros e pessoas. Por fim, o outono, a aceitar-se mais aceita, é a estação da plenitude: auctus (aumentar) e "annus" (ano). Na plenitude de um ano ou de todas suas décadas, cada personagem vive suas buscas.

Ângela que encontra mais de si enquanto espera e procura seus amados, Danilo que encontra a morte enquanto busca mais vida para o seu país, Francisco que sai de cena meio à maneira de deus ex machina, vai à procura de si em outros orientes, e o leitor que encontra este Outono pode buscar nele a inspiração para os milagres de outras primaveras e invernos, e a despeito das estações, sinta calor - e do melhor: humano - na história-romance contada por Lucília Garcez.

Outono

Capa do livro

De Lucília Garcez

Outubro Edições/182 páginas

* Mário Hélio é doutor em antropologia por Salamanca, crítico de arte, escritor, jornalista, professor na PUC de Curitiba, curador de festas literárias. Criou a revista Continente.

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