Robson G. Rodrigues*
postado em 19/02/2019 06:33
A cidade é má, o amor cega e a esperança, há tempos, se foi, lamenta Jards Macalé em seu novo e sombrio álbum, Besta fera. Esse é o primeiro disco de inéditas do ;Maldito; desde o igualmente desiludido O que faço é música, lançado há duas décadas. O musicista carioca de 75 anos retornou em momento que acredita ser caótico. Em sua volta aos estúdios, contou com parceria de jovens músicos que o tiveram como influência e se destacam na cena contemporânea. Nomes que contribuíram para a atual fase de Elza Soares assinam produção e algumas composições deste lançamento.
;Senti necessidade de começar um trabalho novo, com músicas novas;, lembra em entrevista ao Correio o cantor, cujos lançamentos de inéditas se tornaram cada vez mais espaçados a partir dos anos 1980. Nas últimas décadas, o veterano se limitou a resgatar canções próprias e de outros compositores. Passou a andar com os músicos da jazzística banda Metá Metá, Kiko Dinucci (produtor do novo disco, ao lado de Thomas Harres) e Juçara Marçal (que canta na faixa Peixe). Entraram para a força-tarefa do álbum Ava Rocha, Tim Bernardes, Rômulo Fróes, Thiago França, entre outros artistas.
A capa do disco marca o último trabalho do fotógrafo Cafi (1950-2019), autor de mais de 300 capas que morreu no início do ano. No encarte do álbum, se vê apenas a silhueta de Jards Macalé e seus tufos de cabelo. ;Somos todos bestas-feras;, explica Macalé sobre a imagem sem rosto. A faixa que intitula o disco é uma versão adaptada e musicada do poema Aos vícios, de Gregório de Matos. Os versos dizem: ;A ignorância dos homens destas eras/ Sisudos faz ser uns, outros prudentes/ Que a mudez canoniza bestas-feras;.
Melancolia solar
Apesar da melancolia de boa parte das letras, o clima sombrio contrasta com a música por vezes animada. O disco parece sair de um breu para a superfície no decorrer das faixas, que Macalé deixa claro: foram estruturadas do início ao fim. ;A parte instrumental é vigorosa. É solar;, afirma o musicista, que diz ter se divertido na produção das canções e nega ter criado letras amarguradas: ;Não é amargura. É constatar que a gente vive em tempos sombrios.;
O início da turnê de Besta fera será em março, em São Paulo. Ainda sem data prevista, o músico conta que está ansioso pelo show em Brasília. ;Brasília sempre me recebeu muito bem. Inclusive, estive casado na capital durante um período. Sempre estive em Brasília. Espero voltar aí com show;, planeja.
Entrevista/ Jards Macalá
Como foi trabalhar com músicos de gerações mais novas?
O pessoal de São Paulo quis fazer um disco ;paurioca;. Deu mais que certo. A colaboração deles foi fundamental. É muito divertido trabalhar com esse pessoal de outra geração. Porque eles dizem que sofreram influências minhas, do meu trabalho sobre o trabalho deles. Acontece que sempre estive perto de músicos mais jovens buscando esse intercâmbio e também bebendo da fonte deles. Foi uma relação maravilhosa. Muito engraçado também que todo mundo é bem-humorado. A gente se divertiu, na realidade, fazendo esse disco. No Brasil inteiro, andando em shows, tenho conhecido vários autores, compositores, tudo gente com muito talento, com muita força criativa. O problema é que muito não vêm à tona. O que fica por cima é uma coisa meio medíocre. E que ofusca esse pessoal que tem o trabalho bacana, forte.
É um disco bem sombrio. A que se deve essa amargura?
Não é amargura. É constatar que a gente vive em tempos sombrios. Dá até uma certa tristeza de viver em tempos sombrios. Mas, de qualquer forma, tem sempre uma luz no pano de fundo.
As eras a que se refere Gregório de Matos prevalecem?
Esse poema vem de longe. Vem de muito tempo. Eu li o Boca de Inferno nos anos 1960. Já estava na minha cabeça. Eu musiquei. É um poema muito extenso cujo nome original é Aos vícios. E eu comecei a musicá-lo, sintetizei, editei. E digo, com tristeza, somos todos ruins, somos perversos. E ele fala da besta-fera, que virou nome do disco. Inclusive a capa não mostra a cara da besta-fera. Ela não tem rosto. Pode ser qualquer um de nós. Somos todos bestas-feras. Por exemplo, o feminicídio que está rolando por aí. Essa violência toda, é tudo coisa de besta-fera.
O álbum parece que se desloca de um início sombrio para um desfecho menos desesperançoso. Foi feito com essa intenção?
Concordo plenamente. A parte instrumental é vigorosa. É solar. Não fizemos pensando exatamente nisso. Nós vimos assim porque os arranjos todos foram feitos em conjunto. Cada um dava uma ideia, um timbre, e fomos somando essas coisas. Esses arranjos vigorosos e solares. Isso em harmonia. Desde Vampiro da Consolação até Limite. Naturalmente, gravamos cada música em si. No final da seleção, nós em conjuntos fizemos a construção do disco. Então, realmente, é um disco para ser ouvido do princípio ao fim. Apesar de você poder ouvir cada música individualmente.
Você participou do Festival Lula Livre em 2018 e sempre se manifestou politicamente. O disco tem a ver com o momento político atual?
O disco retrata o tempo em que vivemos. Não só no Brasil, como no mundo. A quem vive em Brasília, repito uma palavra que minha jornaleira disse hoje pra mim quando fui comprar jornal. Ela sempre fala do governo. Perguntei a ela o que acha sobre o governo atual. Ela respondeu: ;Você não acha que generalizou demais?;. Eu acho que há um passadismo nessa história. Toda a construção dessa campanha eleitoral, o embate entre candidatos. O candidato que venceu e está aí se apoiou muito em coisas passadas. Coisas que já estão resolvidas, tanto da educação quanto da saúde. A violência não está resolvida.
* Estagiário sob a supervisão de Vinicius Nader